DIDÁTICA, DIDÁTICAS ESPECÍFICAS E FORMAÇÃO DE PROFESSORES

 

Selma Garrido Pimenta

Faculdade de Educação – USP

   

A disciplina Didática, em suas origens, foi identificada a uma perspectiva normativa e prescritiva de métodos e técnicas de ensinar, perspectiva essa que ainda permanece arraigada no imaginário dos professores. Quando indagados sobre o que esperam da Didática, os professores respondem: as técnicas de ensinar. Mesmo porque, de uma forma ou de outra, aprenderam a ensinar com sua experiência e com os modelos de professores dos quais foram alunos.

O que evoluiu no campo do ensino de Didática para alterar essa expectativa? Para examinar seus avanços enquanto disciplina que contribui para a formação de professores, cumpre situá-la no contexto dos saberes das áreas da educação, da Pedagogia, da Didática e das Didáticas específicas, disciplinas conexas que se voltam para fenômenos comuns tais como o ensino. O ensino, com se sabe, é um fenômeno complexo, portanto, multirreferencial; sua compreensão requer múltiplos olhares, a partir de vários campos de conhecimento. Em texto sobre Didática e formação de professores escrevíamos:

Enquanto área da Pedagogia, a Didática tem no ensino seu objeto de investigação. Considerá-lo como uma prática educacional em situações historicamente situadas, significa examiná-lo nos contextos sociais nos quais se efetiva - nas aulas e demais situações de ensino das diferentes áreas do conhecimento, nas escolas, nos sistemas de ensino, nas culturas, nas sociedades — estabelecendo-se os nexos entre eles. As novas possibilidades da Didática estão emergindo das investigações sobre o ensino enquanto prática social viva (pimenta, 1997, p. 53).

Nesse parágrafo, que ilustra o ensino como atividade complexa, estão presentes vários campos do conhecimento: o da Pedagogia, o de outras áreas que se ocupam da educação (Filosofia, Sociologia, Psicologia etc.), o da Didática e o das Didáticas específicas.

Qual a diferença entre esses campos e como se articulam? Para aclarar esses aspectos, partimos do pressuposto de que esses campos têm em comum o estudo da educação. O fenômeno que estudam é a educação em suas múltiplas manifestações, enquanto atividade inerente à sociedade humana. Conforme Brandão (1981):

A educação está presente em casa, na rua, na igreja, nas mídias em geral e todos nos envolvemos com ela seja para aprender, para ensinar e para aprender-e-ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver todos os dias misturamos a vida com a educação. Com uma ou com várias. (...) Não há uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar em que ela acontece; o ensino escolar não é a única prática, e o professor profissional não é seu único praticante.

Nesse sentido, pode-se afirmar que a educação é um processo "natural" que ocorre na sociedade humana, pela ação de seus agentes sociais como um todo, configurando-se como uma sociedade pedagógica. Algumas instituições arrogaram para si a tarefa de "desnaturalizar" a educação, assumindo a responsabilidade de desenvolvê-la sistemática e intencionalmente com vistas a determinadas finalidades. São os sistemas educativos envolvendo as escolas, e seus desdobramentos em órgãos dos sistemas de ensino, em instituições de formação de profissionais, de pesquisa, de desenvolvimento das tecnologias e todo o arcabouço do pensamento e das idéias.

No entanto, ações pedagógicas ocorrem na sociedade em geral, e hoje cresce o entendimento de que estamos diante de uma sociedade genuinamente pedagógica (beillerot, 1985). Desenvolvendo essa idéia, Libâneo (1998) exemplifica com inúmeras situações a presença do pedagógico na sociedade: nas mídias, nas revistas e outras modalidades de material informativo (guias de turismo, enciclopédias, mapas, vídeos, jogos, brinquedos etc.), nas empresas, nos serviços públicos estatais, de assistência social, saúde, promoção social, etc., na medicina preventiva, na educação corporal. Em todos esses lugares ocorre modificação dos estados mentais, afetivos e nos modos de pensar das pessoas, disseminando saberes e modos de agir e de sentir. Há, pois, um reconhecimento da presença do pedagógico na sociedade, extrapolando o âmbito escolar formal e não-formal. No entanto, afirma Libâneo (1998, p. 21), é "surpreendente que instituições e profissionais cuja atividade está permeada de ações pedagógicas desconheçam a teoria pedagógica". Ou seja, esses profissionais não têm se apropriado dos estudos sistemáticos sobre a educação, realizado pela Pedagogia, que, tendo por objeto de estudo a educação enquanto prática social, constrói a teoria pedagógica. Essa perspectiva supera a idéia simplista e reducionista que identifica a Pedagogia com o modo de ensinar a matéria e o uso de técnicas de ensino. Aí o pedagógico diz respeito apenas ao metodológico, aos procedimentos. A Pedagogia ocupa-se destes aspectos mas, antes disso, até mesmo para deles se ocupar, tem um significado mais amplo e mais globalizante. Como afirma Libâneo (1998, p. 22),

ela é um campo de conhecimentos sobre a problemática educativa na sua totalidade e historicidade e, ao mesmo tempo, uma diretriz orientadora da ação educativa. O pedagógico refere-se a finalidades da ação educativa, implicando objetivos sociopolíticos a partir dos quais se estabelecem formas organizativas e metodológicas da ação educativa, onde quer que ela se realize. Nesse entendimento, o fenômeno educativo apresenta-se como manifestação de interesses sociais em conflito na sociedade. Expressa, pois, finalidades sociopolíticas presentes nas ações educativas e orientação de sentido a estas. Por isso, ela é uma ciência sobre a atividade transformadora da realidade educativa. Atividade que é teórico-prática (práxis). Por isso, a Pedagogia tem sua origem, se cria, se inventa, e se renova na relação teoria-prática da educação como ação educativa e, portanto, ciência da e para a educação.

Assim compreendida, a Pedagogia, como campo teórico da prática educacional que não se restringe à Didática da sala de aula nos espaços escolares, mas que está presente nas ações educativas da sociedade em geral, possibilita que as instituições e os profissionais cuja atividade está permeada de ações pedagógicas apropriem-se criticamente da cultura pedagógica para compreender e alargar a sua visão das situações concretas nas quais realizam seu trabalho, para nelas imprimir a direção de sentido, orientação político-social que valorizam, para transformar a realidade. Inclusive na atividade de ensinar, que tem na Didática sua sistematização teórica. Ou seja, o campo do didático é o ensino, atividade de transformar a educação difusa que ocorre na sociedade em conteúdos formativos.

A Didática e as Didáticas específicas

A Didática é uma das áreas da Pedagogia. Ela investiga os fundamentos, as condições e os modos de realizar a educação, através do ensino. Sendo este uma ação historicamente situada, a Didática vai se constituindo como teoria do ensino. Não para criar regras e métodos válidos para qualquer tempo e lugar, mas para ampliar nossa compreensão das demandas que a atividade de ensinar nos coloca, a partir dos saberes acumulados sobre essa questão. E, quem sabe, com eles aprender, encontrar respostas, criar novos entendimentos de como proceder a educação nos espaços escolares, campo mais freqüente do trabalho profissional dos professores.

A Didática explicita, pois, as finalidades do ensinar dos pontos de vista político-ideológicos (relação conhecimento e poder, conhecimento e formação das sociedades), éticos (relação conhecimento e formação humana, direitos, igualdade, felicidade, cidadania), psicopedagógicos (relação conhecimentos e desenvolvimento das capacidades de pensar e sentir, dos hábitos, atitudes e valores), e os propriamente didáticos (organização dos sistemas de ensino, de formação, das escolas, da seleção de conteúdos de ensino, de currículos e organização dos percursos formativos, das aulas, dos modos e formas de ensinar, da avaliação, da construção de conhecimentos).

A Didática possibilita que os professores das áreas específicas, pedagogizem as Ciências, as Artes, a Filosofia. Isto é, convertam-nas em matéria de ensino, colocando os parâmetros pedagógicos (da teoria da educação) e didáticos (da teoria do ensino) na docência das disciplinas, articulando esses parâmetros aos elementos lógico-científicos dos conhecimentos próprios de cada área. Aí será possível configurar e compreender o campo das Didáticas Específicas.

Por fim, reafirmando que a educação como prática social é um fenômeno complexo, histórico, situado e que expressa as múltiplas e conflitivas determinações das sociedades humanas nas quais se realiza, entendemos que seu estudo não se esgota em uma única ciência — a Pedagogia. E educação necessita do aporte de outras ciências como a Sociologia, a Psicologia, a Filosofia, a História, a Antropologia etc., que também se debruçam sobre o fenômeno educativo. Entretanto, enquanto essas ciências abordam o fenômeno educativo sob a perspectiva dos conceitos e métodos de investigação que lhe são próprios, a Pedagogia postula o educativo propriamente dito. Seu campo compreende as ações educativas e seus agentes contextualizados, tais como "o aluno como sujeito do processo de socialização e de aprendizagem; os agentes de formação" (entre eles, as mídias, a família, os agentes de saúde, "as escolas e os professores"); "as situações concretas em que se dão os processos formativos (entre eles, o ensino); o "saber" (como objeto de produção e constituição do humano); "o contexto socioinstitucional das instituições" (entre elas, os sistemas de ensino, as políticas governamentais, "inclusive as escolas e as salas de aula") (libâneo, 1998, p. 30). Em síntese o objetivo do pedagógico se configura na relação entre os elementos da prática educativa: o sujeito que se educa, o educador, o saber e os contextos em que ocorre.

As pesquisas recentes destacam que os temas em que as Didáticas específicas mais dialogam com a Didática são as que adentram a sala de aula e as que buscam investigar os saberes docentes. Mas há pouco diálogo com os demais temas clássicos da Didática, como objetivos e finalidades do ensino, projeto pedagógico e avaliação da aprendizagem. Também estão ausentes preocupações com os contextos de inovações escolares, que não aqueles diretamente voltados à área específica.

No âmbito mais específico da Didática e da formação de professores, as pesquisas têm trazido consideráveis contribuições ao ensino e à explicitação das novas demandas que se põem à Didática. No que se refere às práticas de ensinar, registramos:

-         o desenvolvimento de teorias didáticas que buscam raízes explicativas de novas propostas de ensinar;

-         a consideração de novas categorias como subjetividade e complexidade nas situações de ensinar, ampliando as possibilidades de práticas interdisciplinares e multiculturais;

-         a consideração de novos temas que atravessam as práticas pedagógicas e docentes como tecnologias comunicacionais, cognitivismo, inteligências múltiplas, indisciplina e violência;

-         a valorização identitária do professor, considerando seus saberes, sua subjetividade, sua profissionalidade, com vistas a ressignificar as práticas nos contextos escolares;

-         a valorização da epistemologia da prática que diz da produção do saber docente, do professor-pesquisador e do ensino;

-         a análise critica das práticas a partir de novas propostas políticas nas escolas;

-         a ressignificação do campo investigativo da Didática a partir de releituras das teorias Didáticas.

No que se refere a novas demandas, podemos destacar:

-         as pesquisas sobre políticas públicas que envolvem novas formas de organização curricular, de organização do trabalho docente nas instituições de ensino, novos olhares sobre a relação professor/aluno - ensino/aprendizagem;

-         as pesquisas sobre formação docente (inclusive de professores universitários) e as contribuições da Didática, denotando a importância de seu campo disciplinar;

-         a construção da teoria didática - revisão dos temas clássicos da Didática (ensino, aprendizagem, finalidades do ensino, objetivos, conteúdos, métodos, avaliação) concretamente considerados; revisão dos referenciais históricos e novos conceitos.

Há que se considerar, finalmente, a necessidade de se desenvolverem mais pesquisas que estudem a prática em contextos de políticas de inovação, estabelecendo seus nexos com os resultados de ensino e de pesquisas sobre o campo disciplinar da Didática. Nesse caso, o caminho que se sugere é o de partir de propostas inovadoras de ensino de Didática, acompanhando a prática docente de alunos egressos, com vistas a ampliar as propostas sobre o ensino de Didática na formação de professores, especialmente dos docentes universitários.

 

Referências bibliográficas

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