Didática, Práticas de Ensino e
Currículo:
interfaces temáticas e prática docente
Elizabeth Macedo (UERJ)
Resumo
O texto baseia-se no pressuposto de que tratar as distinções, e
portanto as interfaces, entre didática e currículo é inviável do ponto de
vista epistemológico. Opta, então, por se fixar no espaço-tempo da sala de
aula, onde-quando são reterritorializados seus discursos em meio a uma gama de
outras falas. Sugere que esse espaço-tempo seja entendido como entre-lugar em
que se cruzam e se reterritorializam múltiplas culturas a que pertencem alunos
e professores, culturas estas que incluem os saberes pedagógicos construídos
nos campos disciplinares. Tomando por base, autores que debatem as interações
culturais na contemporaneidade, analisa a interrelação entre o discurso
iluminista e outras culturas presentes no cotidiano da escola.
Em um momento em que as
fronteiras entre diversos campos do saber parecem cada vez menos marcadas,
pensar as interfaces entre didática, práticas de ensino e currículo exige
algumas tomadas de posição. Penso que, do ponto de vista epistemológico,
sequer podemos falar em campos como didática, geral e específicas, e currículo
dada a amplitude de temas que os vem caracterizando nos últimos anos. Isso não
significa, no entanto, que não existam tais campos, com produções próprias e
acentos bastante visíveis. São campos contestados nos quais atores e/ou
instituições debatem em torno de temáticas, mas mais fortemente em torno de
formas de poder específicas que vão caracterizar cada uma das áreas (Bourdieu,
1992). Conforme discutimos em textos anteriores (Lopes e Macedo, 2002 e 2003),
trata-se de campos intelectuais em que sujeitos, que detêm determinados
capitais sociais e culturais, legitimam concepções e disputam o poder de
definir o que é legítimo em cada uma das áreas. Definem, assim, produções válidas
que se transformam em capital cultural objetivado e que influenciam as práticas
pedagógicas num processo que envolve também inúmeras reterritorizalizações.
Dessa forma, penso que não podemos dizer que os limites, e conseqüentemente as
interfaces, entre didática (geral e a variada gama de específicas) e currículo
possam ser definidos pelos aportes teórico-metodológicos que trazem para o
centro da discussão. Pelo contrário, são as relações de poder predominantes
em cada um desses campos que os definem e, portanto, são os campos que
estabelecem as diferenças epistemológicas que parecem defini-los.
Caminhar nesse sentido nos levaria à análise da própria constituição desses espaços disciplinares como espaços de poder e nos remeteria a uma interessante discussão sobre política acadêmica. É certo, como apontado por Jameson (2001), que uma tal discussão se reveste de indubitável relevância política, em um sentido mais amplo, num momento em que projetos de direita desenvolvem uma política cultural baseada no controle de espaços acadêmicos institucionais. Opto, no entanto, por um outro caminho que imagino ser mais instigante. Ao invés de centrar-me nos conflitos disciplinares, fixo-me no espaço-tempo da sala de aula, onde-quando são reterritorializados seus discursos em meio a uma gama de outras falas. Sugiro que esse espaço-tempo seja entendido como entre-lugar em que se cruzam e se reterritorializam múltiplas culturas a que pertencem alunos e professores, culturas estas que incluem os saberes pedagógicos construídos nos campos disciplinares. É, pois, no espaço-tempo da sala de aula que proponho pensar também, mas não apenas, as articulações entre os discursos legitimados das didáticas e do currículo. Parece-me central nesta opção a possibilidade de pensar essa sala de aula como espaço-tempo cultural, onde-quando a pluralidade permite a articulação de resistências variadas às formas instituídas pelos aparatos de poder.
A
sala de aula como entre-lugar
Creio ser preciso deixar claro
que a análise que pretendo desenvolver sobre o espaço-tempo da sala de aula
como entre-lugar em que interagem discursos diversos se enraíza em estudo que
atualmente desenvolvo no campo do currículo. Estou certa, no entanto, tratar-se
de uma discussão que poderia também ser feita a partir o campo da didática,
em que estudos que “consideram a subjetividade, os saberes, a
profissionalidade, com vistas a re-significar as práticas nos contextos
escolares” (Pimenta, 2000, p.97) têm, conforme estudo de Pimenta, mostrado a
complexa trama de saberes presentes no cotidiano das salas de aula. Ou talvez
mais precisamente pudéssemos estabelecê-la a partir do que Libâneo (1998)
denomina o campo da Pedagogia, que envolve tanto as ações educativas quanto os
sujeitos que dela participam. Estou, pois, propondo ser possível defender que
para pensar o espaço-tempo da sala de aula, como outros espaços-tempos pedagógicos,
é preciso tratar a trama que se forma entre sujeitos, agentes de formação,
saberes, instituições (Libâneo, 1998).
Começo sugerindo que entremos
numa sala de aula e procuremos elencar algumas das múltiplas culturas que, de
alguma forma, possam estar nela presentes. Chamo a atenção para o fato de
tratar-se de um exercício de criação que não tem a pretensão de criar um
espaço-tempo ideal da sala de aula. Primeiramente, poderíamos imaginar os
diferentes grupos identitários a que pertencem professores e alunos:
religiosos, étnicos, de gênero, quanto à sexualidade, culturais em sentido
mais amplo. De cada um desses pertencimentos, trazem saberes que penetram na
sala de aula. Inserem-se também em uma cultura midiática, da qual participamos
todos, e interagem com ela de formas diversas a partir de suas experiências.
Dadas as interconexões a distância, mesclamos, ainda, aos nossos
pertencimentos físicos saberes que vivenciamos de forma virtual. São elementos
culturais que se articulam de formas diversas no dia-a-dia da sala de aula.
Se esses elementos têm sido freqüentemente
pouco explorados nas discussões pedagógicas, é preciso não permitir que sua
valorização nos impeça de perceber a força dos elementos normalmente levados
em conta. Falo especialmente dos saberes que conferem à escola certa
especificidade. Aqueles que se fazem objeto de ensino, que se legitimam nos currículos
como, nas palavras de Spencer, o que vale a pena ser ensinado. Saberes que
pertencem tanto aos campos disciplinares próprios de cada especialidade quanto
ao campo pedagógico. Ou seja, saberes que transitam entre os campos de
conhecimento, com suas normatividades próprias, e as normatividades segundo as
quais são pedagogizados. No caso
dos cursos de formação de professores, estas últimas são tornadas também
objeto de ensino, o que confere características muito próprias, por exemplo,
à prática de ensino.
Não é nenhuma novidade que
vivemos, na sala de aula, num espaço-tempo
em que esses saberes de que falei acima interagem. No campo da didática, já
desde Comenius, é constante a idéia, traduzida de formas diversas, de que a
realidade em que estão mergulhados os alunos (e por que não os professores?)
deve ser elemento constitutivo do processo pedagógico. Referências à cultura
ou ao interesse dos alunos encontram-se presentes em grande parte da literatura
didática da Modernidade. Permito-me dialogar especificamente com as tradições
representadas pela pedagogia histórico-crítica e pela literatura de transposição
didática, dada a importância que tais tradições têm no campo da didática e
da prática de ensino.
Chamo de pedagogia histórico-crítica
toda a tradição didática derivada das propostas de Saviani da década de 70.
Obviamente, isso envolve uma enorme simplificação, que opto por assumir visto
que pretendo apenas ilustrar como tem sido tematizada, no âmbito da didática,
a multiplicidade de saberes na sala de aula. Importa-me ressaltar, no trabalho
da pedagogia histórico-crítica, a defesa de que os currículos privilegiem os
saberes acumulados pela sociedade ocidental, propondo que a escola trabalhe uma
espécie de cultura essencial. Nas palavras de Libâneo (2000), “os
conhecimentos sistematizados, selecionados das bases das ciências e dos modos
de ação acumulados pela experiência social da humanidade e organizados para
serem ensinados na escola” (p.37). A ênfase no conhecimento acumulado
precisa, no entanto, ser vista de forma mais ampla, sob pena de análises
apressadas como a que faz Silva (1999) ao tratar a pedagogia histórico-crítica
no quadro das teorias curriculares tradicionais. Embora a centralidade no saber
sistematizado seja a tônica, Saviani (1986) pontua que o saber acumulado de que
fala “supõe um saber existente, mas isto não significa que o saber existente
seja estático” (p.20). Como ressalta Libâneo (1991), os conteúdos têm a
sua dimensão científica, mas também dimensões histórica e crítico-social—
em que a articulação entre os conteúdos de ensino e as experiências
concretas dos alunos é buscada. Essa articulação entre saber elaborado e
experiências concretas fica clara em Saviani (1986), quando defende sua
perspectiva dialética da aprendizagem. O autor argumenta que o aluno confronta
seu saber prático e não-sistematizado com o conhecimento acumulado pela
humanidade, rompendo com sua visão ingênua de mundo e passando a atuar sobre
ele a partir de suas novas experiências.
Faço tais ressalvas para tornar
clara minha posição contra os equívocos de análise da pedagogia histórico-crítica
como uma proposta tradicional, que trata as relações entre conhecimento e
poder numa perspectiva limitada, enfatizando apenas “a aquisição e
fortalecimento do poder das classes subordinadas” (Silva, 1999, p.63) na
medida em que dominam os conteúdos hegemônicos. Minha preocupação é de
outra natureza e aponta para a forma como é vista a relação entre os
diferentes saberes no ato pedagógico. É inegável que a pedagogia histórico-crítica
reconhece e dá centralidade aos saberes que professores e alunos, como sujeitos
históricos e sociais, trazem para o espaço da sala de aula. Retira-lhes, no
entanto, de seus sistemas conceituais ao negar-lhes organicidade e tratar-lhes
como percepção sincrética do mundo. Com isso, privilegia a ciência, ou a
dimensão científica dos conteúdos, como a única em que os saberes parecem
compor um quadro conceitual que permite a real compreensão do mundo.
Embora uma tal posição seja
plenamente defensável no quadro teórico do marxismo em que se insere a
pedagogia histórico-crítica, penso que essa defesa traz uma contradição para
dentro de sua própria formulação. Ao tratar os saberes comuns dos sujeitos
como formas sincréticas e ingênuas de ver o mundo, a pedagogia histórico-crítica
dificulta, quase anulando, a possibilidade de se pensar de forma relacional os
saberes presentes no espaço-tempo da sala da aula. Em seu lugar, opta pela
substituição de saberes menos organizados por outros mais organizados, o que a
meu ver acaba por impedir que estes últimos sejam tratados em sua dimensão
histórica ou crítico-social. Em suma, defendo que tais dimensões somente
podem ser ressaltadas em uma proposta que encare os saberes presentes nas salas
de aula de forma relacional, tarefa que a pedagogia histórico-crítica não
chega a se propor.
Quanto à transposição didática,
trabalharei com a noção para designar não apenas a perspectiva defendida por
Chevallard (1997) de que os saberes sociais (em geral tratados como acadêmicos)
precisam ser transformados para se constituírem em objeto de ensino, mas todo
um conjunto de reflexões realizadas por autores diversos tendo por base essa
perspectiva. Fixo-me na idéia, prevalente entre esses autores, de que a mediação
pedagógica envolve aspectos de natureza tanto política quanto propriamente didática.
Interessa-me destacar, especialmente, a preocupação dos autores em denunciar a
não identidade entre os saberes ensinado e acadêmico, ao mesmo tempo em que
salienta a necessária articulação entre eles. Dessa perspectiva, destaco a
importância que a noção de transposição traz para o entendimento dos fluxos
culturais presentes na sala de aula. Saberes são produzidos fora da escola, em
outros espaços-tempo, inseridos em suas dinâmicas próprias. No entanto, por
razões diversas, migram para outros espaços-tempo, o que envolve uma série de
reconstruções que os torna familiares ao novo lugar-tempo que passam a ocupar.
Se pensássemos nos saberes escolares, em suas múltiplas relações com o
social, ganhariam destaque as várias mediações por que passam os saberes
sociais (ou acadêmicos) operada nos espaços-tempo escolares. Mediações
efetivadas por atores sociais com diferentes pertencimentos culturais.
Embora se fixando na dimensão
epistemológica do processo didático, a noção de transposição traria,
portanto, pela introdução da idéia de que há uma mediação entre os
conhecimentos sociais (ou acadêmicos) e os escolares, a possibilidade de tratar
a sala de aula como espaço-tempo
de produção cultural. Permitiria uma contestação bastante clara da
legitimidade imediata do saber escolar por referência a outros espaços-tempo.
No entanto, defendo que o fato de privilegiar a dimensão estrutural da
sociedade limita o seu potencial de análise, na medida em que nega aos sujeitos
qualquer protagonismo nas ações de resistências. Destaco que, se Chevallard
(1997) advoga que a relação entre saberes acadêmicos e escolares seja vista
de forma mediada, a mesma mediação não parece necessária para a análise das
relações entre os saberes escolares e aqueles trazidos para escola pelos
pertencimentos diversos dos sujeitos. Ao contrário, o autor sustenta que o
saber ensinado precisa distanciar-se do senso comum, ou seja, do espaço-tempo
em que alguns saberes estão sendo produzidos por sujeitos que são também
professores e alunos. Desencarnando os sujeitos da escola— aqueles que operam
a transposição didática internamente no pequeno espaço livre deixado pelas
transposições externas operadas pelas estruturas— a análise termina por
defender a constituição do sistema didático deixando de fora culturas que
habitam o espaço-tempo da sala de aula. Dessa forma, as estratégias de resistência
ficam limitadas à crença iluminista de que a consciência das formas de
funcionamento das estruturas permitirá a sua superação.
Pretendi salientar como a diferença cultural é vista por duas das mais relevantes teorizações do campo da didática, geral e específicas. Defendo que ambas as tradições, coerentes dentro da tradição a que pertencem, contribuem para a deslegitimação das formas culturais não hegemônicas[1], impossibilitando uma melhor compreensão inclusive daquilo que tomamos por conhecimento escolar. Não se trata apenas de algo que fica ausente, mas das próprias formas de compreensão do que está presente. Defendo, como McCarthy (1994) a necessidade de que a diversidade de culturas presente na sala de aula seja tratada numa perspectiva relacional, evitando as hierarquizações ou as omissões que dificultam tanto uma ação política mais inclusiva quanto a própria compreensão do didático.
O
espaço-tempo da cultura
Meu objetivo, neste texto, é
discutir o espaço-tempo da sala de aula como aquele em que uma cultura escolar
é produzida. Nego, com isso, a perspectiva de que a escola possa ser pensada
como uma instância em que uma cultura reificada é selecionada e transmitida.
Essa negação não significa, no entanto, o desprezo à tradição ou ao
conhecimento que “normalmente”[2]
é objeto da escolarização. Creio que a aparente contradição presente na
formulação que pretendo defender— uma sala de aula como espaço de produção
de cultura e a aceitação de que há nos currículos um saber tradicional—
precisa ser tratada em um quadro mais amplo de preocupações trazidas pela
contemporaneidade.
Esse quadro no qual proponho que
nos mexamos é movediço e tem sido marcado por algo que temos chamado de
globalização e que, como salienta Jameson (2001), possui significados variados
que vão do comunicacional ao econômico, passando obviamente pela cultura. Como
diz o autor, “uma possibilidade óbvia é pensar que a globalização
significa a exportação e a importação de cultura” (p.48). É bem verdade
que as trocas (ou compra e venda) culturais não são próprias da
contemporaneidade. Os diferentes espaços-tempos sociais, entre eles a escola,
propiciaram, desde sempre, contato e embates entre diversas culturas. No âmbito
específico do saber acadêmico, entre campos disciplinares por vezes
excludentes; num âmbito mais amplo, entre sistemas referenciais tão diversos
quanto a ciência e a religião. A perplexidade atual parece ter mais a ver com
a intensidade com que essas culturas entram em contato, tornando menos nítidas
fronteiras que, em outros tempos, até se podiam demarcar: entre o tradicional e
o novo, entre a ciência e a cultura, entre campos disciplinares (como didática
e currículo), entre a cidade e o campo, entre o ocidente e o oriente, entre as
nações. Ao afirmar essa diferença de intensidade não estou, no entanto,
advogando que essas fronteiras existissem em essência e que tenham desaparecido
por obra do desenvolvimento tecnológico. Entendo, como Hall (1997), que “as
novas forças e relações postas em movimento por esse processo (de globalização)
estão tornando menos nítidos muitos dos padrões e das tradições do
passado” (p.20). Em outras palavras, têm-se tornado insustentáveis as divisões
operadas pelo pensamento Moderno.
Um dos autores que formulou de
maneira eloqüente as inter-relações culturais propiciadas pela globalização
foi García Canclini (1998). A despeito de a análise de García Canclini dar
pouca ênfase às diferenças econômicas que dão mais mobilidade e poder as
formas culturais de determinados grupos, sua apropriação do conceito de
hibridismo cultural me parece útil para que se perceba as relações entre
tradição e produção cultural. O hibridismo dos processos culturais funciona,
segundo o autor, por intermédio de três mecanismos fundamentais: a descoleção
dos sistemas culturais organizados, a desterritorialização dos processos simbólicos
e a conseqüente expansão de gêneros impuros.
A descoleção dos sistemas
culturais organizados envolve a ruptura com os sistemas de organização de bens
simbólicos construídos pelo pensamento Moderno. Um sistema que, além de
localizar esses bens em um quadro de hierarquias, conferia àqueles que o
dominavam o poder de estabelecer diferenças. Para García Canclini (1998), os
processos de descoleção vêm se multiplicando, tornando pouco nítidas as
fronteiras estabelecidas pelos sistemas de organização Modernos. A estratégia
da descoleção é associada a da desterritorialização dos processos simbólicos,
na qual o autor salienta que não se pode mais tratar de forma natural a relação
entre cultura e território, este entendido como geográfico ou social. Assim,
as produções simbólicas, sejam elas novas ou tradicionais, são
constantemente reterritoralizadas, re-alocadas, sempre de forma relativa e
parcial, em novos territórios. Por fim, García Canclini (1998) analisa a
expansão de gêneros impuros, entendidos como aqueles que habitam a interseção
entre os gêneros que a Modernidade colecionou, como por exemplo: o erudito e o
popular; a ciência e o senso comum.
Com esse modelo, García Canclini
(1998) está se propondo a estudar as manifestações culturais que parecem não
caber nas coleções Modernas. Manifestações que envolvem, para o autor, toda
uma miríade de bens simbólicos. A pergunta que proponho e que ainda não
pretendo responder é se não nos seria útil pensar a relação entre as
culturas presentes na sala de aula como híbridos? Será que não precisaríamos
ver que os saberes acumulados pela ciência, pelas artes, pela literatura, pelo
senso comum ou pelo saber popular são constantemente descolecionados e
desterritorizalizados com a criação de gêneros impuros? Parece-me que, se
assim procedêssemos, a sala de aula seria mais facilmente vista como espaço-tempo
de produção cultural e a relacionalidade entre os saberes nela presentes
poderia ser mais facilmente explicitada. Por outro lado, perderíamos a
possibilidade de definir fronteiras entre didática e currículo.
Quando entendo que tanto a ciência
quanto o saber pedagógico quanto os “saberes comuns”[3]
são descolecionados e desterritorializados produzindo novos bens culturais, híbridos
e impuros, no espaço-tempo da sala de aula, é preciso salientar que o processo
de produção de gêneros impuros se dá em meio a relações desiguais de
poder. Não há como negar, por exemplo, a mobilidade e a potência do discurso
iluminista no interior da escola e que, ainda que descolecionados,
desterritorizalizados e “impurificados”, seus fragmentos detêm especial
poder. Esse poder não deve, no entanto, para García Canclini (1998), ser visto
de forma vertical e bipolar, mas descentralizada e multideterminada. Ao tornar
fluidas as fronteiras entre as coleções, o hibridismo torna, também, menos óbvias
e estáticas as relações de poder entre os fragmentos: múltiplos poderes se
entrelaçam, garantindo uma eficácia que não seria alcançada por nenhum dos
poderes isolados. A trama oblíqua que se constrói tanto fortalece certos
grupos quanto potencializa resistências.
No geral, no entanto, García
Canclini, ressalta os aspectos positivos do hibridismo, diluindo formas de poder
bastante fortes em sua trama oblíqua. Jameson (2001) acusa sua visão de
celebratória da globalização, destacando que “esta visão requer um pouco
de especificidade econômica e é inconsistente com a qualidade e com o
empobrecimento do que tem que ser chamado de cultura corporativa em escala
global” (p.59). Embora concordando de certa forma com as críticas de Jameson,
entendo que García Canclini oferece uma importante contribuição ao salientar
que “todas as culturas são de fronteira” (p.348). Ao meu ver, essa formulação
tem importantes conseqüências políticas, na medida em que desconstrói
binarismos e hierarquias e permite que sejam pensadas alternativas ao poder
instituído. Creio, no entanto, que essas conseqüências são melhor estudadas
por Hall (2003) e Bhabha (2003).
Ambos os autores trabalham no
sentido de entender como, no contexto do mundo globalizado, podem ser entendidas
as relações entre uma cultura mundial, homogênea, e lógicas culturais
alternativas. Diferentemente da García Canclini, Hall (2003) e Bhabha (2003)
reconhecem que a tendência cultural dominante é a homogeneização seguindo
imperativos postos por um “mercado global”. Ressaltam, no entanto, que essa
tendência “não pode controlar ou saturar tudo dentro de sua órbita. (...)
Entre seus efeitos inesperados estão as formações subalternas e as tendências
emergentes” (Hall, 2003, p.59), embora estas também estejam sujeitas aos
desejos de homogeneidade. Hall (2003) está defendendo que nenhum sistema
cultural pode se estabilizar sem conter em si a diferença, ou melhor, que nem
“inauguram formas totalmente distintas de vida” (p.61) nem “conservam
intactas as formas antigas e tradicionais” (p.61). Assim, os sistemas
globalizantes convivem com localismos que eles mesmos produzem, localismos que
chocam suas distintas temporalidades com o desejo universalizante dos sistemas
globais.
A noção de hibridismo é também
central para as formulações de Hall (2003) e Bhabha (2003). Em poucas
palavras, Hall (2003) e Bhabha (2003) defendem que a produção atual da cultura
se dá num espaço-tempo interdisciplinar em que suas diferentes manifestações
são hibridizadas. Espaço-tempo liminar cindido entre a tradição, com tudo
que traz de manutenção e acúmulo, e a geração do novo. As culturas
tradicionais formam, para os autores, um repertório de significados ao qual os
indivíduos recorrem para dar sentido a suas experiências correntes marcadas
pelo projeto europeu globalizante. Com isso, as culturas vivem uma espécie de
tradução em que seus sistemas de referência são confrontados com a sua
insuficiência pela negociação com o “outro”, com a diferença. Creio que
é na idéia de negociação-com-a-diferença que reside o maior potencial político
do pensamento desses autores em relação ao de García Canclini.
Bhabha (2003) salienta que a
diferença cultural não pode ser pensada apenas como uma controvérsia dentro
do projeto globalizante. Ela é a subversão da lógica desse projeto na medida
em que tem por objetivo “rearticular a soma de conhecimentos a partir da
perspectiva da posição de significação da minoria que resiste à totalização”
(p.228). Ela abala os significados globalizantes e obriga a negociação das
contradições, ao expor a impossibilidade da tradução perfeita: o mesmo será
sempre outro em cada prática social específica. Como lembra Hall (2003),
“todos negociam culturalmente em algum ponto do espectro da différance, onde
as disjunções de tempo, geração, espacialização e disseminação se
recusam a ser nitidamente alinhadas” (p.76). Essa negociação, imposta pela
diferença, propicia, para os autores, um espaço heterogêneo em que os
particulares serão transformados numa hibridização— inevitável, mas não
necessariamente negativa. Nesse sentido, a discussão da diferença cultural
como forma de intervenção pode oferecer a possibilidade de se pensar uma política
subalterna.
Embora consciente de que tanto
Hall (2003) quanto Bhabha (2003) estão se propondo a analisar movimentos amplos
no campo da cultura, sugiro que suas análises podem ser úteis para tentarmos
entender o espaço-tempo da sala de aula. Como em qualquer espaço-tempo, na
escola e na sala de aula está em curso um processo cultural em que identidades
são construídas, desejos são mobilizados, valores morais são definidos. Um
processo em que sentidos são negociados num espaço-tempo liminar marcado por
discursos hegemônicos— como o iluminismo—, mas também por histórias
heterogêneas e contextuais de grupos em disputa. Defendo que, como professores,
precisamos estar conscientes da complexidade em que se dá essa negociação,
sob pena de dificultarmos as resistências. Complexidade esta que envolve
perceber que o poder dos discursos culturais é diferenciado, que determinadas
teorias tem mais mobilidade que outras.
De
volta à sala de aula: tentando pensá-la como espaço-tempo relacional
Depois do passeio por um terreno
pouco familiar à pedagogia, o que em si próprio expressa o caráter liminar do
conhecimento contemporâneo, proponho o retorno à sala de aula. Um retorno que,
como nos lembra Hall (2003), nunca será ao mesmo. Estará sempre impregnado por
algo que “a experiência da diáspora cultural causa em nossos modelos de
identidade cultural” (p.28). Sair da pedagogia é também uma forma de duvidar
de algo “autêntico” que julgávamos nos constituir. É uma viagem sem
volta, mas ao mesmo tempo é uma viagem que não chegou. Não chegou a um
terreno puro da antropologia, permanece num dos muitos meios de caminho que
constituem a experiência cultural. É desse lugar diaspórico que proponho
revivermos nossa sala de aula.
Desse lugar, poderíamos perguntar que discursos culturais percebemos hibridizados em nossas salas de aula. A resposta, no entanto, nos exigiria a desagregação do híbrido em elementos de origem supostamente autênticos. Tarefa impossível. As culturas não mais podem ser encaradas como distintas, homogêneas, auto-suficientes. Não há mais como retornar ao mesmo. Proponho, ao invés disso, que busquemos perceber como o projeto global do iluminismo, que tem na escola uma de suas importantes instâncias organizacionais, vai sendo progressivamente minado e fortalecido, no interior da sala de aula, por tradições locais[4]. Nas palavras de Young (2001), um exercício em que “as tradições intelectuais e culturais desenvolvidas fora do ocidente constituem um corpo de conhecimento que pode ser usado com grande efeito contra a hegemonia política e cultural do ocidente” (p.65). Entendo que um tal exercício permite que desenvolvamos uma visão cultural da sala de aula, em que professores e alunos estejam engajados “numa reflexão crítica sobre a organização do conhecimento escolar e sobre as conexões entre o currículo e as experiências e os futuros diferenciais dos jovens de grupos majoritários e minoritários para além da porta da escola” (p.83).
Quando assumo que o iluminismo é uma das tradições mais fortes em nossas salas de aula, não postulo que o sucesso dessa tradição tenha algo a ver com características epistemológicas internas, mas com a combinação de estratégias sociais e técnicas[5]. Por sua força, entendo que essa tradição tem muito a nos dizer quando questionamos não só sobre os conhecimentos legitimados no espaço da escola, mas sobre toda a organização da escolarização. Um primeiro aspecto que quero ressaltar é que entender a importância dessa tradição torna próximos alguns discursos que nos acostumamos a ver em confronto. Oposições clássicas entre natureza e cultura, ciência e sociedade passam a ser re-interpretadas. Por um lado, as relações de oposição foram criadas no seio do pensamento iluminista e, lidas a partir de outras perspectivas culturais, tratam de elementos que se somam na construção da hegemonia do racionalismo iluminista. Por outro, confrontadas com os contextos contemporâneos, parecem insustentáveis.
No sentido de buscar tornar mais claro o argumento que tento desenvolver, proponho-me a pensar a partir das salas de aula de um curso de formação de professores em ciências naturais. Um dos mais clássicos problemas dessa formação diz respeito a difícil articulação entre conhecimentos científicos e pedagógicos. Trata-se de um problema que, embora não se restrinja às oposições natureza/cultura e ciências naturais/ciências humanas, é certamente atravessado por elas. Lido de dentro da tradição iluminista, pouco conseguimos avançar na construção da almejada relação interdisciplinar que, defendemos, poderia melhorar a formação docente. Da perspectiva aditiva do esquema três mais um, passamos à criação de “disciplinas interdisciplinares”— metodologias específicas e práticas de ensino— que discutimos a exaustão. Buscamos articular teoria e prática, iniciamos a prática em diversos momentos do currículo, aumentamos a carga horária dos estágios. Mas definimos tudo isso dentro de uma tradição hegemonicamente iluminista.
Assim, embora pareça haver um hiato entre as disciplinas de conteúdo e as pedagógicas, ciência e pedagogia partilham um mesmo racionalismo, cujos princípios podem ser facilmente percebidos se recusarmos o universalismo que buscam construir em torno de si. Em relação à ciência, tenho ressaltado, em textos anteriores (Macedo, 2003 e Macedo, no prelo), como a crença universalista, sustentada por uma epistemologia internalista, tem criado a ilusão de um mundo homogêneo, detentor de uma verdade intrínseca, que pode ser revelada por uma ciência única. Ao longo dos séculos, a ilusão de unidade e universalidade da ciência teve como objetivo declarado a sua proteção de toda e qualquer influência cultural, embora, cotidianamente, essa ciência se constituísse a partir de conhecimentos de diferentes culturas reinscritas nos cânones do conhecimento ocidental válido. São inúmeros os exemplos de como a ciência Moderna apropriou-se de saberes locais para aumentar sua coleção, ao mesmo tempo em que desvalorizava os demais sistemas de conhecimento.
Conclusões semelhantes podem ser tiradas em relação aos saberes pedagógicos. Em princípios do século XX, padrões de formação baseados no desenvolvimento do potencial moral do(a) professor(a) e no treinamento mínimo do manejo da sala de aula com ênfase nas relações inter-pessoais e na autoconfiança do docente foram substituídos por métodos alicerçados nas ciências sociais e na psicologia experimental. A vocação natural foi substituída por uma ordem racional, com a valorização de modelos externos de comportamento— que poderiam ser treinados e avaliados— e com a definição de padrões mínimos de formação profissional. (Popkewitz, 1997). A didática, o currículo, a avaliação passam a se constituir em um conjunto de saberes que, se não têm a mesma universalidade das ciências, a tem como horizonte. Enquanto a didática se propõe a ensinar tudo a todos, o currículo busca respostas homogeneizantes sobre o que vale a pena ser ensinado. Respostas que têm por base a razão, eliminando de sua formulação aspectos ligados à emoção, à intuição, que, não por acaso, são vistos como características femininas. Assim, embora a razão iluminista distinga, por exemplo, didática e currículo, essa distinção é também o lugar da semelhança.
Creio que esse pequeno resumo nos permite perceber semelhanças entre os saberes científicos e pedagógicos que se mesclam nas salas de aula. Ainda que de formas variadas, pertencem a um mesmo sistema de conhecimento que buscou se diferenciar dos saberes locais. O estranhamento dos que não partilham da cultura universal, nomeados como o “outro”, acaba por justificar as mais diferentes formas de colonialismo, tanto político como cultural. Os sujeitos comuns são distinguidos daqueles que dominam o sistema de conhecimento privilegiado— a burguesia, o operariado, o tecno-cientista. Ainda que pareça insustentável a idéia de um corpo de conhecimentos singular, formado por um conjunto de conhecimentos tão harmônico que se torna universal, ciência e pedagogia continuam a se contrapor a outros sistemas de conhecimento, negando seu caráter local.
Bhabha (2003) e Hall (2003) nos ensinam, no entanto, que os processos de dominação cultural são cindidos em sua origem. Lembram que “as forças da autoridade social e da subversão ou subalternidade podem emergir em estratégias de significação deslocadas, até mesmo descentradas” (Bhabha, 2003, p.206). O domínio cultural, por mais que se apresente como autoridade incontestável, estará sempre cindido. Uma cisão que se manifesta na necessária negociação com as culturas do “outro” que precisa ser educado. A própria educação é, assim, uma negociação entre as culturas de alunos e professores e o projeto iluminista. Por mais que este último— como saber social acumulado— se proponha como substitutivo às culturas locais de pertencimento de alunos e professores, a tarefa mesma de substituição envolve o reconhecimento do “outro”. O “conhecimento ocidental” nutre por esse “outro” um misto de desprezo e desejo que cria ambivalência no processo de substituição e abre possibilidades de alternativas, exigências de diálogo. Bhabha (2003) define essa ambivalência quando analisa o processo de dominação colonial, em que lembra que o próprio ato de colonizar (como o de educar) pressupõe uma ausência, que desqualifica e afasta, mas não pode prescindir da aproximação. Ao aproximar-se das culturas que despreza, para mudá-las, o projeto iluminista de escola acaba por potencializá-las para a resistência.
Com esse tipo de percepção, retomo uma questão que veio dando corpo ao argumento que tentei desenvolver: como pode o espaço-tempo da sala de aula nos ajudar a ler relações entre campos como a didática, as práticas de ensino, o currículo? Tal pergunta, como venho defendendo, só tem sentido no quadro da modernidade ocidental. Na sala de aula, outras tradições culturais acabam por chamar a nossa atenção para o fato de que esse discurso, que se construiu como homogêneo, é apenas mais uma forma de compreender o mundo, tão arraigada a seu contexto local de produção quanto as outras práticas culturais. Como nos lembra Bhabha (2003), é vivendo na fronteira e nos limites “que estamos em posição de traduzir as diferenças entre eles, numa espécie de solidariedade” (p.238). Imagino que a contribuição dos saberes “não- escolares” para pensarmos a constituição os saberes escolares— e suas distinções em campos disciplinares— reside em sua capacidade de confrontar diariamente os discursos homogeneizantes no espaço-tempo da sala de aula. Dessa forma, entendo que esses saberes questionam a tradição seletiva que preside a organização da escola e que sua valorização, numa perspectiva relacional, pode auxiliar no processo de construção de uma educação de respeito à diferença.
Referências
Bibliográficas
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[1] Entendo como formas hegemônicas àquelas expressas pelo conhecimento científico ou pelo saber acumulado.
[2] Uso normalmente entre aspas para chamar a atenção para a arbitrariedade que envolve o ser “conforme a regra”.
[3] Estou chamando saberes comuns os bens simbólicos presentes nas salas de aula pertencentes a outros sistemas referenciais que não os referendados pelas ciências ou por outros campos (artísticos, literários, práticos) como aqueles que tem lugar na escola e no currículo escolar.
[4] Este mesmo exercício poderia/deveria ser feito com outras culturas “fortes” que penetram nas salas de aula. Ressalto, no momento, a cultura do mercado global e a cultura midiática. Por hora, prendo-me ao iluminismo.
[5] Desenvolvo algumas dessas estratégias no texto apresentado no II Seminário Internacional sobre Redes de Conhecimentos (Macedo, 2003).