O CORPO CIBORGUE E O CORPO DA “TIA” NO ESPAÇO-TEMPO DIDÁTICO: REFLEXÕES A PARTIR DE UMA PERIFERIA GLOBALIZADA
Geraldo
da Silva Gomes[1]
Isabel
Cristina Auler Pereira[2]
Maria
Lourdes F.G. Aires[3]
Do cruzamento de saberes e interesses científico-acadêmico-educacional, estamos iniciando uma jornada buscando um aprofundamento teórico-analítico focalizado nas relações entre novas tecnologias, comunicação, arte-linguagem e educação. Dos domínios teóricos que delimitaram abordagens iniciais sobre currículo, religião e educação na metade da década de 1990 (GOMES, 1995), das telas políticas indutoras da formação de professores (AIRES, 1998) e das linguagens simbólicas de um sertão-cidade tocantinense (PEREIRA, 2002), em estudos de mestrados em educação e literatura, logramos estabelecer um espaço-encontro reflexivo de nossa prática profissional docente e de pesquisador@s no contexto educacional do estado do Tocantins.
Com essa junção de saberes,
procuramos localizar os discursos e práticas em veiculação, a partir da
didática, destacando os movimentos tecnofóbicos e “tecnofoliões” ao redor das
novas tecnologias da comunicação e da informação propondo uma reflexão conjunta sobre os nós e as possíveis redes
de interação entre arte, tecnologia e educação, enfocando, de modo especial, a temática do corpo como
expressão artística e como conteúdo curricular que tem adentrado a sala de aula, algumas vezes como
objeto de estudos biológicos e, outras, como conteúdos nem sempre didáticos.
As novas tecnologias vão sendo introduzidas no universo educacional escolar e não cessam de nele agir, fomentando mudanças de pensamento e de valores. Vivemos no espaço tocantinense, uma mutação cultural do escrito para o audiovisual, do papel para as telas do computador, da quietude do texto impresso para a interatividade da informática.
Nesse percurso, a reflexão sobre a relação arte e tecnologia nos abre um novo campo de buscas e de entendimentos do processo educacional no mundo contemporâneo. Como pensar a arte e introduzi-la no universo escolar, distanciando-a dos repertórios mecânicos da mal fadada educação artística como componente curricular ideologicamente cooptado por uma tradição conservadora brasileira? De que maneira a experiência estética sobre novos corolários da tecnologia pode influenciar o desenvolvimento cognitivo e afetivo dos alunos, contribuindo para construir a sua identidade?
A arte como forma de expressão permite desenvolver a sensibilidade estética e a criatividade. Em nossa mente existe um reservatório de imagens (imaginário) capaz de tornar sensível e material o lado imaterial da vida. Quando o artista faz passar essas imagens para o domínio da representação simbólica, recupera uma nova visualidade expressiva que recria diferentes níveis de apropriação do Mundo. A criatividade é a possibilidade de realizar uma produção inovadora na qual a imaginação (capacidade de pensar por imagens) tem um papel primordial. A flexibilidade de pensamento e o potencial criativo estão diretamente relacionados, favorecendo-se mutuamente.
Contudo, no momento contemporâneo, não se arroga
somente à arte e a seus produtos o exercício de contemplação, isto é, o diálogo
privilegiado entre o mundo cognitivo e o mundo afetivo – uma visualidade
excepcional, uma emoção que nos transcende e nos remete para uma outra
dimensão. Outras experiências estéticas
vêem sendo estabelecidas por mecanismos e processos de interatividade.
Com os artistas devemos aprender a incorporar, a fazer uso das tecnologias disponíveis. De acordo com Domingues (1997):
Os artistas oferecem situações sensíveis com
tecnologias, pois percebem que as relações do homem com o mundo não são mais as
mesmas depois que a revolução da informática e das comunicações nos coloca
diante do numérico, da inteligência artificial, da realidade virtual, da
robótica e de outros inventos que vêm irrompendo no cenário das últimas décadas
do século XX. (p.17)
Uma nova estética da comunicação defendida por Mario Costa dá-se sob as novas formas de vivências estéticas instauradas pelas tecnologias comunicacionais com outras reflexões filosóficas distintas das categorias estéticas tradicionais (forma, beleza, sublime, obra, gênio etc.). Nessa perspectiva, surgem novas proposições do corpo e da capacidade humana cognitiva e de gerenciar e devolver sinais, ao conectar-se a bancos de dados eletrônicos, ampliando as formas de sentir, pensar e sonhar, numa fusão do imaginário do artista que programa e alimenta o sistema e as possibilidades das tecnologias, transformando dados em situações antes não imaginadas. Com isso, tecnologias interativas (DOMINGUES, 1997), próprias de uma cibercultura, colocam o computador com suas memórias, redes e sub-redes como elemento agenciador de uma arte fortemente comportamental, que demanda um corpo em ação.
Máquinas, enquanto artefatos manuais transmutaram-se (SANTAELLA, 1997). Cada vez mais estamos nos aproximando de outros mapas e rotas de conhecimento e do viver humano. Uma era pós-biológica está sendo gestada? Esse termo pós-biológico se refere a aspectos da vida humana estendida pelas tecnologias, que modificam os processos de conhecimento de mundo, alteram e ampliam o campo de percepção de nosso corpo biológico conectado às máquinas e suas tecnologias digitais. Um labirinto de proposições e reflexões vai sendo dado fora dos eixos de uma ficção científica, vista apenas como literatura.
Segundo Domingues, a arte deste século introduziu realmente o corpo no cenário. Não somente a partir de representações que falam do corpo como em séculos anteriores, mas ações, comportamentos que envolvem o corpo na sua capacidade física de produzir trabalho, ou seja, imerso no conceito de energia. Todas as manifestações da arte gestual, da action painting e do gestualismo da pintura de Pollock, de Kooning, as investidas com o corpo que se joga e escreve suas marcas sobre o suporte, como em Yves Klein, a body-art”, happenings e performances são algumas das manifestações que envolvem o corpo em suas capacidades de se implicar no ato de criação.
Qual é então o papel das tecnologias nessa relação com a arte? As tecnologias possibilitarão, justamente, que as ações do corpo se conectem às possibilidades de sistemas complexos, para ganhar capacidades antes não experimentadas. E essa ação não se limita somente ao ato de criação do artista, mas se estende ao "espectador", que se torna um participante ativo do que é proposto. Por sua vez, o artista não mais oferece uma obra-objeto, mas um processo a ser vivido com o corpo, através de um sistema interativo.
Interação é um termo que ganha destaque nesta relação. A perspectiva de uma participação do corpo do "espectador" que é exigida na arte interativa é responsável pela alteração das fronteiras da cultura da representação delimitada pela obrigatoriedade de uma arte vista como contemplação. O alvoroço com o corpo do “Derrubador brasileiro” compõe, então, uma reação normal.
As tecnologias numéricas e digitais estão a nos oferecer a possibilidade de se entrar no que é proposto pelo artista, a partir de dispositivos como mouses, teclados, luvas, sensores, câmeras de captura ou outra interface que conecta o corpo para o dialogo com o computador. As interfaces permitem o acesso às informações que, quando processadas, geram transformações em tempo real, ou no mesmo tempo em que estamos agindo e em que recebemos respostas do sistema. Nestas trocas, energias são mobilizadas entre o participante da experiência e a situação que lhe é proposta.
Essa arte totalmente processual gera acontecimentos em fluxos de energia com trocas feitas com banco de dados eletrônicos, em corpos robóticos, através de interfaces que captam e transmitem ações feitas em parceria com um computador, em redes de computadores, ou em computadores que falam com outros computadores, em diálogos que envolvem telefones, modens de redes telemáticas, ou ainda, através de programações computacionais avançadas, como redes neurais, sistemas de conhecimento de voz, mundos de múltiplos usuários, entre outras possibilidades tecnológicas em que agentes computacionais nos oferecem experiências em ambientes virtuais.
1.
Pontos de Saída
Nas duas últimas décadas do século XX, estivemos presentes na docência no Ensino Superior do Tocantins e isso continua nos possibilitando realizar um exercício, constante e contínuo, de aprendizagem enquanto professor@s. No que concerne aos discentes, temos percebido que uma nova geração de alunos está presente no espaço acadêmico, mais expressamente desde os últimos anos da década de 1990. A partir da observação de suas falas, posicionamentos políticos e ideológicos, opções de consumo, concepção e fruição estética, vemos que eles são extremamente metamórficos, maleáveis. Indícios de uma geração de “proteus[4]” está sendo gestada, seguindo indicações do psicólogo Robert J. Lifton (1993). E isso coloca-nos em xeque, pois também estamos em gestação. Movimentos de desterritorialização e reterritorialização advindos com a globalização, em sua escala mundial, indicam que:
O mundo “
moderno” das territorialidades contínuas/contíguas regidas pelo princípio da
exclusividade (cada Estado com seu espaço e suas fronteiras bem delimitadas
frente ao território do outro) estaria cedendo lugar hoje ao mundo das
múltiplas territorialidades ativadas de acordo com os interesses, o momento e o
lugar em que nos encontramos. Percebe-se aí ao mesmo tempo um ângulo positivo
(a vivência concomitante de múltiplos “territórios” e identidades) e negativo (
a fragilidade e a instabilidade de nossas relações com os outros e com o meio).
( HAESBAERT:
1997, 44)
Segundo Jeremy Rifkin (2001: 153), assumimos também quem:
Um novo arquétipo humano está nascendo. Vivendo confortavelmente uma
parte de suas vidas nos mundos virtuais do ciberespaço, familiarizados com os
trabalhos de uma economia de rede, menos interessados em acumular coisas e mais
interessados em ter experiências emocionantes e divertidas, capazes de
interagir em mundos paralelos simultaneamente, mudando rapidamente sua própria
personalidade para se adaptar a qualquer realidade – simulada ou real – diante
de si, os novos homens e mulheres do século XXI são bem diferentes de seus pais
e avós burgueses da Era Industrial.
No universo educacional, esse novo arquétipo vem sendo observado e até mesmo sendo-lhe possibilitado mais elementos estabilizadores de identidade. No cruzamento das reflexões e comparações analíticas entre a modernidade e a pós-modernidade (RIKFIN, 2001; MÜLLER, 1997; GIDDENS, 1990) no eixo educacional, vamos construindo pares de contraposição entre o que tivemos e aquilo que as novas gerações estão trazendo para a sala de aula. Verificamos que existe uma primeira possibilidade de explicação sobre nossa formação discursiva e comportamental enquanto professores, ou seja, enquanto arquétipos de uma geração de modernos valorizamos: o estudo como superação e progresso socioeconômico; defendemos a igualdade dos indivíduos; preconizamos uma irrestrita observância às normas, à uniformidade, à busca da certeza, à segurança; as verdades para nós são objetivas, enfatizamos a memória, a palavra, o pensamento e a reflexão; alertamos a todos os momentos sobre a importância dos livros e para a cultura ilustrada (MÜLLER: 1997, 29); enfim, como herdeiros da Idade Moderna, foi nos possibilitado construir uma certeza: - se o mundo natural pode ser conhecido e explorado, então, aqueles que, pela inventividade e pelo trabalho árduo, transformarem a natureza em artifício e commodities deverão colher as recompensas sendo capazes de ter os frutos de seu trabalho (RIFKIN: 2001, 156).
Em contraposição a esse conjunto inicial, vemos uma nova geração que apregoa a liberdade dos indivíduos; aceita as diferenças individuais, está aberta às possibilidades inovadoras da criatividade; maneja-se diferenciadamente com as crises; aceita o erro como passo construtivo da aprendizagem; o som, a imagem, a percepção e a fruição estética estão sobre o pensamento e a reflexão; as verdades são múltiplas e objetivas; o espaço escolar é mais uma possibilidade de oferta de aprendizagem, mas não o único; a infotelecomunicação (MORAES: 2001) deixou de ser junção de termos e se tornou presença na vida cotidiana; há um desinteresse pelo estudo teórico enquanto leitura passiva, pois se almeja a interação como elemento básico de uma experiência.
Os acadêmicos pós-modernos e os críticos sociais gostam de falar da
geração ponto-com.como sendo a primeira geração a crescer em um mundo comercial
simulado. Mas, em que os jovens de hoje são diferentes das crianças burguesas do
final do século XIX e início do século XX? Embora haja muitas semelhanças, as
diferenças são profundas e sugerem que um novo tipo de ser humano está sendo
preparado para o século XXI – indivíduos cujo sentido do self (termo usado por
Freud para indicar o ser total – o corpo, os instintos, os processos
conscientes e inconscientes) está ligado menos a quando resultado eles produzem
e quantas coisas eles acumulam e mais a quantas experiências vividas e
relacionamentos eles têm acesso.(RIFKIN: 2001, 162).
Lifton (1993) focaliza essa nova geração de seres humanos “proteus” vivendo dentro de urbanizações de interesses comuns, fazendo leasing de automóveis, comprando on-line pela internet, extremamente hábeis no acesso e na busca de informações; consideram-se participantes criativos dos processos sociais, mas não se colocam na categoria de trabalhadores. Terapêuticos e não ideológicos, instáveis, incapazes de formar uma sentença escrita, mas extremamente competentes no processamento de dados eletrônicos. A vida para eles é um palco e como a cantora-“atriz” Madonna vivem de perfomances e happenings. Fluídos, móveis, refazem-se constantemente à procura de novos estilos de vida.
Frente ao que estamos observando no cenário acadêmico tocantinense tais considerações teóricas possuem pertinência. Entretanto, face às diferenças de contexto, elas não devem ser concebidas como imperativos categóricos. Assumimos que a própria realidade possui uma fluidez constante, conforme BAUMANN (2001):
Os fluídos se movem facilmente. Eles “fluem”, “escorrem”, “esvaem-se”,
“respingam”, “transbordam”, “vazam”, “inundam”, “ borrifam”, “pingam”, são
“filtrados”, “destilados”; diferentemente dos sólidos, não são facilmente
contidos – contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam
seu caminho. (...) A extraordinária mobilidade dos fluídos é o que os associa à
idéia de “leveza”. (...) Associamos “leveza” ou “ausência de peso” à mobilidade
e à inconstância: sabemos que pela prática que quanto mais leves viajamos, com
maior facilidade e rapidez nos movemos.
Essas são razões para considerar “fluidez” ou “liquidez” como metáforas
adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas
maneiras, na história da modernidade. (p.8-9)
É
discurso, já considerado, comum em inúmeros textos lidos que as novas
tecnologias da informação e da comunicação vêem provocando uma mudança de
padrões na forma de estar no mundo das sociedades contemporâneas (LÉVY, 1996;
KENSKI,2000; DOMINGUES, 1997). Também as reflexões sobre a presença da arte na
relação com novas tecnologias-educação sinalizam as possibilidades de uma outra
humanização do ensino. A partir de nosso corpo, biológico e num espaço
histórico-geográfico, fomos tecendo uma tela de reflexões indicando os nós e as
possíveis redes de interação sobre esta relação.
O
contato com leituras contemporâneas e reflexivas sobre a arte, a tecnologia e a
educação projeta-nos para uma profusão de termos, que antes eram desconhecidos
ou não possuíam tanta importância, num espaço-tempo de prática educativa que
vivia sob os princípios de categorias marxianas. Em alguns momentos iniciais,
referências a happenings, performances, body-art, conceptual art eram
remetidas a determinadas admoestações, que nos eram levantadas para não incorrermos
numa arte dita burguesa. Em outros, referências a produções cinematográficas e
literárias de ficção científica que remetiam-nos ao proibitivo e ao distante,
pois ao se viver e se manejar profissionalmente em determinadas regiões fora do
eixo artístico-reflexivo brasileiro, acaba-se ficando isolado de tudo aquilo
que se está discutindo num panorama mais amplo.
Ao
tomarmos contato com essas terminologias, fomos nos obrigando a localizar em
nossa história em quais lugares e tempos elas apareceram, como uma forma de
tirar delas um peso preconceituoso e até mesmo um certo medo. Não se pode
esquecer que preconceitos e prejuízos são frutos de um não-saber, ou de um
saber extremamente ultrageneralizado e econômico, enquanto forma de pensamento
arraigado à cotidianidade e ao senso comum. Ciborgues, pós-humano,
pós-biológico, espaço virtual... mais e mais termos-conceitos aderem à nossa
vida, manejando-se sobre concepções e práticas educativas ditas dialógicas,
libertadoras, progressistas que muitas
vezes assustam com as possibilidades de transformações.
Nisso,
da mesma maneira que uma cartografia extremamente básica foi realizada para
localizar alguns filmes, realizou-se também um caminho para recordar em quais
momentos históricos se confrontou com algumas dessas novas expressões, ou esses
nós no corpo e na mente.
Stellarc
(1997) surpreende-nos ao apresentar um certo manifesto sobre a necessidade de
reposicionamento do corpo humano, aumentando-se mais a surpresa quando se
visualiza nas páginas da Web suas construções e projeções. Segundo ele:
O
corpo precisa ser reposicionado, do reino psíquico, do biológico para a
ciberzona da interface e da extensão – dos limites genéticos para a extrusão
eletrônica. (...) Noções da evolução das espécies e distinção de gênero são
remapeadas e reconfiguradas em hibridizações alternadas do homem-máquina. (...)
Corpos e cyborg não são simplesmente conectados com fios e extensões, mas são
também ampliados com componentes implantados (p.52).
Ao
recuperar a palavra ciborgue – do inglês cyborg – percebemos que ela é a
abreviatura para um organismo cibernético. Haraway (1980: 243) assinala que
ciborgue é um organismo cibernético híbrido: é máquina e organismo, uma
criatura ligada não só à realidade social como à ficção (...) criaturas
simultaneamente animal e máquina que habitam mundos ambiguamente naturais e
construídos. Mas onde se encontram os nossos ciborgues?
Tateando na memória, percebemos que o termo não é novo, isto é, embora as novas tecnologias estejam a apresentar avanços incomensuráveis também na área de entretenimento, localizamos o nosso primeiro ciborgue na extinta TV Tupi, no final de 1969 - a memória acaba sendo tecida por fios midiáticos. Hoje, esse ciborgue poderá ser chamado de anime5 pelas novas gerações.
Na continuidade da busca desses ciborgues, localizamos outros dois marcadamente na segunda metade dos anos 70: “ O homem de seis milhões de dólares” e a “Mulher Biônica”. Em plena Guerra Fria, o mundo especulava qual país seria o primeiro a soltar uma bomba nuclear. No Brasil, o video-tape era uma novidade e a tecnologia começava a entrar com força no mercado. Um futuro em que homens sobreviveriam com a ajuda da ciência era algo inatingível para as mentes de muitas pessoas. O Homem de Seis Milhões de Dólares trouxe essa realidade para mais perto, povoando a imaginação de gerações de crianças e jovens em todo o mundo. A série foi inspirada no livro Cyborg de Martin Caidin. Inicialmente, a história foi roteirizada para um filme, produzido pela rede de TV ABC, nos Estados Unidos. Posteriormente foi produzida a série “A mulher biônica”.
Algumas imagens, conforme apresentadas, permanecem em nossas memórias desses seriados televisivos. Pela primeira vez, fora dos malabarismos dos desenhos animados, via-se em imagens “reais” a fusão de tecnologias e partes do corpo humano, com uma estética high tech, isto é, com cores, formas e imagens distintas, diferentes das que manejávamos no cotidiano.
Não se refletia ao assistir
esses seriados sobre a relação homem-máquina de maneira incorporada, com uma
intervenção de alteridade. Era apenas a máquina, a tecnologia que
potencializava o humano, não se supunha qualquer idéia de mediação mais
aprofundada. Mesmo ao possuirmos esses pedaços de memórias midiatizadas sobre
ciborgues e uma possibilidade de entendimento, inicialmente tímida sobre a
relação homem-máquina em outras plataformas de compreensão, um descompasso se
estabeleceu. Contudo, das memórias midiáticas à realidade do espaço-tempo
educacional estereótipos e arquétipos são fornecidos por outras matrizes
socioculturais. Os ciborgues guerreiam com o corpo d@ professor@.
A área hoje compreendida pelo Estado do Tocantins possui uma longa e rica história de povoamento e de ocupação pela sociedade nacional. Emancipou-se política e administrativamente do Estado de Goiás em 1988, catalizando para a capital - Palmas, cidade projetada e construída, todas as metáforas de progresso e desenvolvimento dos grupos oligárquicos. Contudo, com um cenário arquitetônico pós-moderno e discursos preconizando as tecnologias salvíficas, matrizes sócio-culturais desse passado próximo são ainda determinantes. No cenário educacional, perdura um conjunto de ensinamentos e bases teológicas advindas das tradições cristãs católica e protestantes, com ênfase nas confessionalidades batista e presbiteriana.
Nisso, os grupos que migraram antes para o norte-goiano e, posteriormente, para a unidade federativa recém inaugurada, encontravam fortemente essas matrizes (GOMES, 1995). Perdurou, durante décadas, as chamadas escolas confessionais conveniadas com a rede escolar pública, sobretudo, nos municípios mais influentes economicamente, como Porto Nacional, Pedro Afonso, Tocantinópolis etc.
Nas unidades escolares das cidades do Brasil do “interior” deparamos com o que chamamos metaforicamente, de o corpo da tia. Esse corpo da tia foi apregoado nos discursos e práticas de um currículo oculto nas escolas confessionais religiosas e tido como modelo para as demais unidades escolares. Quem era a tia? Era a professora, a segunda mãe, e a escola, o segundo lar, devendo ser um modelo cristão arregimentador de bons exemplos para que os educandos obtivessem referências comportamentais sadias para toda a vida.
As normativas morais embasavam as justificativas e representações de uma sociedade cultural dominante que delimitava as fronteiras e limites entre o culto, o popular, o elitista e aquilo que poderia ser considerado massivo e vulgar. O magistério era uma instância voltada exclusivamente para a mulher. Entretanto, os espelhos eram as freiras católicas e as missionárias leigas das congregações protestantes. Os estereótipos expressavam-se por uma estética dura, sem cor, sem brilho, considerada positiva aos moldes da espiritualidade pregada. Os arquétipos se remetiam à figura de uma grande e benévola mãe.
Um corpo modelo da professora-mestra-mãe-tia era oferecido e determinantemente obrigado a ser seguido. Carinho, perseverança e autoridade deveriam ser as características da “tia”. O sujeito “professor-professora” emergia desse cruzamento, produzindo uma representação estética sem qualquer autonomia; movimentos gestuais deveriam ser imitados e seguindo uma ordem de discreta elegância e comedimento, equilíbrio nas cores, nos tons e nos moldes. As artes, a literatura de vanguarda e movimentos políticos de minorias se articulavam junto à juventude, às mulheres, aos negros e homossexuais oferecendo alternativas. Na sociedade externa, pelejas sobre o novo e na sociedade interna e suas escolas perdurava a prisão do corpo cristão.
Fazer e pensar arte não se irmanavam na maioria dessas escolas. A arte deveria estar voltada para uma atitude de contemplação sobre determinadas obras produzidas ao longo da história, desde que se remetessem à pacificação dos espíritos indômitos e prenunciativa das maravilhas divinas.
Convenientemente, nas salas de estudo, encontravam-se determinados fascículos de grandes pintores, mas com volumes específicos sobre as representações artísticas religiosas do Barroco. A arte era focalizada somente para a pintura, enquanto produção simbólica, iconográfica e alusiva à história do Brasil (a primeira missa), cenas da família ideal brasileira ou as imagens religiosas de piedosos Cristos nos crucifixos, anjos e Madonas. O restante era considerado uma instrução artística voltada para que alunos adquirissem destreza de movimentos e habilidades de caligrafia.
Os livros didáticos de História salientavam pinturas paisagísticas brasileiras, cenas amareladas de uma mata tropical com “aborígenes” e sua condição de sub-humanidade confrontadas com os “civilizados” europeus. Discursos com tons de asco e nojo eram proferidos sobre ao “Botocudos, Puris, Patachos e Machacalis” de Jean Baptiste Debret. Uma arte ilustrativa era colocada para comprovar que este país e seus corpos necessitavam da civilização.
Recordamos de quando o “corpo de “tia” começou a sofrer comoção, quando foi confrontado com coleções de arte brasileira não tão religiosas. Através de relatos coletados assistematicamente, localizamos as surpresas do encontro de professores e professoras com “O Derrubador brasileiro” de Almeida Júnior, quando por um acaso num conjunto de pôsteres adquiridos pela escola veio essa cópia do quadro. Essa obra de Almeida Júnior traz um jovem mameluco de dorso nu, descalço, recostado numa pedra junto à sombra. Apresentava-se de uma forma viril, porque o artista havia nos idos de 1857, salientado também sua região genital. O jovem mameluco assemelha-se a grande maioria dos adolescentes imberbes e homens já adultos da região. O corpo do macho chegava para a escola religiosa, causando comoção e desconforto aos princípios religiosos impostos.
Na mesma época, nos idos da década 1990, para ampliar a comoção da pintura a publicidade das cuecas Mash começava a provocar furos em revistas femininas. Corpos de homens e mulheres começavam a ser explorados pela mídia e isso desestabilizava também aquele corpo escolar.
E o jovem mameluco metamorfoseou-se para um “Menino do Rio” e para outdoors publicitários e toda uma força da mídia. Um movimento propondo outras posturas culturais, sexuais e afetivas fincava pé no Brasil, ao mesmo tempo em que a mídia aliada aos interesses mercadológicos e expansão do capital promovia mais ofertas de sentidos e comportamentos sócio-culturais.
Hoje, é “comum” nas publicações impressas e dos demais veículos midiáticos a veiculação do corpo, enquanto objeto de desejo e de consumo. Até o momento, frisamos determinadas imagens mais voltadas para o corpo do masculino, porque elas atingiam diretamente todo o universo da mãe-tia-professora. A imagem do feminino propagada nos meios massivos servia para os discursos moralizantes, enquanto que a introdução do corpo masculino quebrava determinados tabus imagéticos.
Um corpo profano, vivo, do mundo-vivido ameaçava o referencial divino consolidado por uma mística religiosa e detentora de poderes no campo educacional. O risco do desencantamento do mundo era grande, dessa forma, determinados dispositivos sempre eram referendados para refrear ímpetos de ruptura. E tudo isso, nos anos 80-90. Com isso, a arte em meio aos avanços técnicos e tecnológicos acabou não acontecendo. Muito embora, desde 1996 determinados grupos educacionais prenunciavam um outro repertório para o acercamento da arte e educação, a repercussão era bem pouca, porque a força de uma tradição era e, continua sendo ainda, difícil de ser rompida.
2.2 Reconstruindo nosso corpo sem uma guisa de
conclusão
Artistas (Sterlarc, White, Tanaka, Sermon, Espuma) preconizam o que os cientistas (Moravec etc.) de grandes institutos científicos vêem explicitando. Instrumentos e tecnologias estão sendo criados com capacidades de desenvolver outras percepções do corpo, inclusive rompendo sua própria obsolescência (p.310), sem produzir catástrofes humanas, muito embora perdurem melancólicas lamentações de Baudrillard e Virillio (p.311).
Costa (1997) relaciona esse corpo às redes das neotecnologias comunicacionais, convidando a se entender uma nova estética da comunicação que aí se elabora: a combinação de dispositivos robóticos e de tecnologias comunicacionais, via cabo ou via éter, (...) em condições de conduzir o corpo, ou melhor, a corporeidade, a toda parte,e [permita] introduzir a noção de um corpo misto, ubiquitário e coletivo (p.312).
Categorias estéticas novas conduzem a um sublime tecnológico (p.313), abrindo novas possibilidades de compreensão da corporeidade e suas mutações no mundo. Nesse sentido, o braço visualizado não é aquele da crítica apocalíptica às mídias, que tudo conduzia canibalisticamente ao consumo e à alienação, muito menos, àquele braço extensão de uma mão direita que não pode ver a mão esquerda evangelicamente.
A arte pode nos revelar aspectos humanos das tecnologias. Estranha constatação que escutamos em passado muito recente. As fronteiras entre seres biológicos e maquínicos, corpo e pensamento, matéria e viva e inerte são colocadas em movimento. As tecnologias da comunicação e da informação mediadas por computador oferecem a possibilidade de novas experiências, e formas de interação entre homens e máquinas. Hibridismo entre elementos naturais e artificiais, orgânicos e metálicos, e entre espaços internos e externos, físicos e não-físicos oferecem outras possibilidades nosso devir (DOMINGUES, 1997). Com as tecnologias o corpo não está mudando sua configuração biológica, mas alterando sua capacidade de processar informações (KERCHOVE, 1994; KENSKI, 2003).
Um
grande desafio permanece para as escolas na atualidade. Viabilizar-se como
espaço crítico, apropriar-se das novas tecnologias da comunicação e da
informação de forma a ampliar os
espaços de interação e diálogo dos alunos com outras realidades, fora do mundo
da escola. Articulações variadas com outras instâncias e áreas de conhecimento
poderão ampliar a construção coletiva
dessa relação entre arte, educação e as novas tecnologias e contribuir
para que os alunos desenvolvam sua criatividade, utilizem outros tipos de
racionalidades: a percepção crítica, a imaginação criadora e a sensibilidade
artístic
A
partir de nosso corpo, biológico e num espaço histórico-geográfico, cada vez
mais ampliado pelas redes de interação, nós, professor@s deveremos aprender a nos
manejar entre as tecnofolias e tecnofobias do universo escolar.
Referências Bibliográficas
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[1] Filósofo, Mestre em Educação (UFG), doutorando em Comunicação (UNISINOS), docente da UNITINS e CEULP-ULBRA.
[2] Licenciada em Letras, Mestre em Literatura (UnB), doutoranda em Educação (UFBA), docente da UFT.
[3] Pedagoga, Mestre em educação (UFG), doutoranda em Educação (UFBA), docente da UNITINS.