ENSINO DE HISTÓRIA : ENTRE A INTENÇÃO E O GESTO*

                                                            Miriam Bianca Amaral Ribeiro**

 

      Não têm sido raras as vezes em que presenciamos importantes debates sobre as concepções que polemizam a área de Ciências Humanas, especialmente a História.São congressos, seminários, publicações,enfim, os mais diversos das polêmicas teóricas que povoam nossas jornadas de trabalho.São conquistas significativas, as quais saudamos.Ocorre que as relações entre esses embates ,muitas vezes limitados ao acadêmico, e o cotidiano da prática pedagógica do ensino de história demonstram um distanciamento no mínimo, preocupante.Para participar da discussão atual sobre a didática de História,precisamos não nos limitar ao universo da escola de Ensino Fundamental e Médio nem ao trabalho nas Universidades, mas sim e obviamente buscar as relações entre as duas faces da mesma moeda.

     A referência a essas relações como as “duas faces de uma mesma moeda”, provavelmente,desagradará alguns.Consideramos que não é possível desconectar a pesquisa e a produção histórica e teórica das mais variadas formas de acesso a elas que  as pessoas , quaisquer pessoas, têm direito.Essa idéia, um tanto escondida mas ainda presente, de que a alguns é dada a faculdade de produzir e a outros, a tarefa de reproduzir o conhecimento,merece quase um tratamento de choque.A intenção aqui não é de forma alguma, ignorar as diferenças e as especificidades de cada campo da atuação do profissional da história.Afirmamos, sim que elas não são necessariamente excludentes nem “hierarquizantes”.Isso equivale dizer que o professor é um pesquisador e quem pesquisa também tem que se lembrar que o conhecimento produzido não pertence como indivíduo e precisa ser disponibilizado a todos, direta ou indiretamente.Essa tarefa de disponibilizar o conhecimento produzido inevitavelmente de forma coletiva / socialmente,não é tarefa somente do pesquisador nem somente do professor.

*Este texto é uma versão preliminar ,elaborado para o CD-Room do I EDIPE.          A versão definitiva para a edição dos anais do evento será revista e ampliada.

**Professora assistente da Faculdade de Educação da UFG.

 

Não ignoramos aqui, é bom lembrar, as preferências ,as habilidades, as aptidões ,ainda que  possamos discutir sua origem ou “naturalidade”.Reconhecer a especificidade de cada campo não torna um deles mais importante ou complexa.Ou será mesmo que podemos considerar a análise de documentos do Brasil Colônia,guardados na Torre do Tombo, em Portugal mais complexa e indecifrável do que a tarefa de convencer uma sala com 40 adolescentes de que estudar a Mesopotâmia ou visitar um museu é uma atividade que lhe diz respeito,mesmo que não vá “cair na prova”.Quem convive com a sala de aula sabe do que estamos falando.São complexidades diversas, mas ambas reais e que exigem investigação, fundamentação e habilidade.

A questão que se coloca é que essa é uma discussão de caráter epistemológico.Ou seja, envolve a abordagem do que pensamos ser o processo de produção do conhecimento.Consideram-se todos nós capazes de produzir conhecimento e o trabalho pedagógico como sendo,fundamentalmente, um processo de produção deste conhecimento e não sua reprodução, então, precisamos considerar alunos, professores e /ou pesquisadores participantes deste processo.Certo é que, provavelmente, não se descobrirá algo de inovador ou revelador na produção de conhecimento realizada nas salas de aula do Ensino Fundamental,por exemplo, se considerarmos o  que a historiografia já registrou.Mas, para quem está na sala de aula como aluno e mesmo como professor, a elaboração da interpretação e as relações estabelecidas entre os dados e fontes acessíveis são sim produção do conhecimento e criação.A não ser é claro, que ainda consideremos a visão positivista da história, com sua versão descritiva, compartimentada,enfadonha ,”factualizante “e muito ,muito chata, como uma boa idéia para aquela sala de aula de adolescentes a que já nos referimos antes.Aliás, costumamos dizer que ao enfrentar um programa curricular de história ou um conteúdo específico que você, professor, não consegue convencer você mesmo da justeza ou necessidade de se abordado em sala,então é melhor excluí-lo de seu planejamento.Se nem a gente, profissional da História , consegue se convencer daquelas seqüências “idiotizantes”de fatos,datas e nomes, como convencer nossos alunos de que isso serve para alguma coisa?

Alguém pode estar pensando: mas essa história de positivismo já está superada,a produção teórica já derrotou essa concepção. Aí  retomamos o começo: nem tanto.O que ainda presenciamos é uma hierarquização das atividades do profissional da História, aliás, não só da história, mas de todas as áreas que lidam com a licenciatura.As discussões teóricas parecem não fazer parte da escola de Ensino Fundamental ou Médio e as discussões pedagógicas parecem não fazer parte da Licenciatura.Não porque seus profissionais não estejam em condições de delas participarem.Parece que nossa vida se divide entre antes  e depois de sair da faculdade.O que se estuda lá dentro é pra ser pesquisador.Quando de lá saímos,damos de cara com a sala de aula, nossa total desconhecida.Aí,o primeiro manual que encontrarmos e que nos salve desde sufoco, acaba sendo nossa muleta para o trabalho pedagógico.São condutas, nos campos de estágio, que parecem trazer a luz para a escuridão. Exagero?Nem tanto.Basta olhar a repercussão dos estágios na vida da escola ou levantar quais são os livros didáticos mais adotados nos últimos anos ,especialmente em se tratando das séries iniciais do Ensino Fundamental.

O problema já se configura na formação do profissional da história,quando os cursos de licenciatura/bacharelado consideram , na prática, a sala de aula como trabalho menor .Parece que trabalhar com pesquisa e dar aulas são atividades tão distintas e excludentes!Isso é uma bobagem que dificulta até a inserção dos alunos no mercado de trabalho.

Essa dicotomia hierarquizante entre pensar e reproduzir fica visível quando na universidade, as disciplinas ditas “pedagógicas”,inclusive as que são ministradas pelo próprio departamento ou faculdade de origem , são vistas e tratadas como sub-disciplinas.Estamos falando de cargas horárias prejudicadas e até mesmo tentativas de extirpação.São produções didáticas consideradas trabalhos inferiores e as vezes não-acadêmicos.São publicações didáticas secundarizadas ou mesmo esquecidas  nas editoras universitárias, para ficar em para ficar em alguns exemplos.É claro que isso nos chega envolto em com uma terminologia e argumentação que nem de longe deixa transparecer tal idéia.Mas, é só prestar um pouco mais de atenção e achamos tudo isso lá, nos cursos de história .

Por tudo isso, essa antiga discussão ainda é parte integrante da discussão atual sobre didática de história.Afinal, o papel desta área de conhecimento na formação da visão de mundo de alunos e professores de todos os níveis é cada mais imprescindível.Qual o estatuto das Ciências Humanas em sua origem positivista e qual o atual?A contribuição de Boaventura Santos(1989), pode ilustrar o que afirmamos, quando observa que , diante da crise do modelo positivista,as ciências humanas e as ciências naturais, em breve tempo, não mais existirão, quando as naturais se dissolveriam nas humanas.É, segundo ele, a inversão epistemológica de sua constituição, pois seria contrário de sua origem , quando as Ciências Humanas foram tratadas quase como  uma costela de Adão das ciências naturais.Ou seja, até para entender a natureza e os avanços das ciências naturais é preciso entender a sociedade .

Temos convivido com polêmicas e problemas na atualidade que bem ilustram essa consideração.A  discussão da liberação ou não dos alimentos transgênicos, por exemplo,não pode ser considerada uma discussão das ciências naturais, simplesmente.É evidente que já se sabe o suficiente sobre as conseqüências “naturais” de sua utilização, pois o domínio desta tecnologia não se faz sem esse componente.O eixo central da questão está nas conseqüências sociais, econômicas e políticas do monopólio  e da hegemonia desta tecnologia, só compreendidas se se levar em conta as relações sociais e  a história dessa relações.Entender a história, é hoje, mais do que nunca, uma questão de sobrevivência individual e coletiva.Então, o também já antigo discurso de que o ensino  crítico de história  é condição para uma escola que para construção de uma visão participativa e transformadora do mundo, não está de forma alguma superado.

Porém, não serve a essa construção  a visão positivista desta história.E a contradição é exatamente essa:  por mais que já tenhamos avançado nas formulações teóricas e polêmicas acadêmicas, a hegemonia explícita ou velada do positivismo ou o simples desconhecimento desta diversidade de possibilidades de abordagens da ciência ou do ensino da ciência pode ser constatada em qualquer pesquisa de campo realizada nos dias de hoje.Como exemplos desta realidade temos uma pesquisa recém concluída entre os professores das séries iniciais do Ensino Fundamental da Rede Municipal de Goiânia.Nesta pesquisa, que oportunamente abordaremos,fica explícito que nem mesmo identificar o objeto e o método das Ciências Humanas é algo resolvido pela maioria dos professores.A maioria dos professores entrevistados confunde o objeto das ciências naturais com o das Ciências Humanas.Isso o leva a identificar conteúdos programáticos como estados da água ou órgãos do sentido como conteúdo da área de humanas.Isso sem falar no rol de datas cívicas inventadas por Vargas e retomadas pelo Regime Militar que continuam impregnadas nas aulas de história.Sobrevive um grande vazio nas almas e diários de classe, quando por algum motivo, as datas não são “comemoradas”.

     Mas, o que tem sido feito com o discurso presente em nossos planos de trabalho que sempre nos remetem à tarefa de “contribuir para a formação do cidadão crítico”?A questão é que  hoje podemos considerar como objeto e objetivo desta idéia de visão crítica da vida social tem sido repensado, ainda que não hegemonicamente.Mas, essa é uma discussão que desenvolveremos no texto final dos anais do I EDIPE.

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