PESQUISA E QUESTÕES DA DIDÁTICA NA ATUALIDADE*
Mara
Medeiros**
Durante vários anos convivemos com a importação de teorias da Educação
Física, principalmente oriundas da Espanha, França e Portugal, como a Ciência
do Movimento Humano, ou Psicocinética de Jean Le Bouch, a teoria Antropológico-Cultural,
ou Cineantropologia, de José Maria Cagigal, e a Ciência da Motricidade Humana,
ou Quinantropologia, de Manuel Sérgio, para citar apenas aquelas que ofereceram
maior influência nos meios acadêmicos, já que não atingiam a cotidianidade
da prática.
Entretanto, a didática da educação
física nas escolas nem sempre era baseada em teorias, mas em concepções de
metodologias e preceitos pedagógicos. Trabalhava-se com modelos de aula do método
francês, desportiva generalizada, calistenia e etc. Durante décadas eram estas
as nossas referências, e as nossas discussões versavam sobre o dilema de se
trabalharíamos em função de educar o movimento, ou se seria uma educação
pelo movimento, se o mais adequado seria o termo motricidade ou psicomotricidade.
Nessa época, o contexto histórico
da educação física era a sua crescente utilização político-ideológica
pelo governo militar e, como fazendo parte de tal utilização, a formação
alienante dos profissionais para atuarem na área. A educação física da época
era fundamentalmente centrada no professor forte, saudável e higienicamente
correto.
Até então a produção científica nacional era insignificante, uma vez
que não contávamos com cursos de mestrado e doutorado. No final da década de
70 começam a surgir no Brasil os primeiros programas strictu-sensu em nível de
mestrado, na área da Educação Física. A Universidade Federal de Santa
Maria-RS e a USP foram as pioneiras, com o corpo docente constituído por
professores titulados em doutorados da Alemanha e Estados Unidos. A partir do
trabalho desses doutores e considerando a linha de estudos desses países que
acolheram as suas vivências e experiências como pesquisadores, tivemos um
numero significativo de pesquisas voltadas para o aspecto biológico e do
desempenho, partindo de um referencial teórico da medicina. Estava aí
delineada a epistemologia da Educação Física daquele momento histórico.
Ainda nos primeiros anos da década
de 80, devido a ausência de programas de doutorado no país, parte dos nossos
mestres passou a buscar o doutorado em outras áreas, prioritariamente a Educação.
Alguns doutores representantes dos mestrados mais tradicionais passaram a
defender em congressos a necessidade de criação de cursos de doutorado em
educação física por que a diáspora dos professores para a área da Educação
“poderia mudar os caminhos da Educação Física no Brasil”. De fato mudou e
a mudança se configurou não apenas porque mudaram os enfoques e referenciais
teóricos daqueles que buscavam os cursos em outras áreas, mas porque, como
elementos multiplicadores, esses professores acabaram por disseminar uma outra
perspectiva de pesquisa, abordando outros aspectos que não os biológicos, a
partir de um referencial teórico da área da Educação.
Surge assim uma nova vertente nas
pesquisas em Educação Física no país, agora na perspectiva qualitativa e a
Universidade Gama Filho foi bastante importante nesse contexto. Na didática se
discutia com muita ênfase o papel mediador do professor e o aluno como sujeito
da sua educação, mesmo que partisse de uma argumentação escolanovista.
Talvez a grande influência para a
nova geração de teóricos nacionais tenha sido a Teoria Crítico-Marxista de
Jean-Marie Brohm sobre o corpo e o esporte, cujos conceitos expressavam valores
advindos do movimento estudantil francês de 1968. A argumentação de Brohm a
respeito do Esporte como meio de alienação ideológica e como associado à
sociedade capitalista, vislumbrando como única saída a transformação da
sociedade para o regime marxista, delineou uma linha de abordagem da educação
física brasileira, sobretudo na segunda metade da década de 80. Mesmo
considerando a infinita importância da introdução de conceitos marxistas nas
reflexões a respeito do corpo, educação física e do esporte (o que de fato já
havia ocorrido com a busca do doutorado em Educação), é preciso
contextualizar historicamente as argumentações de Brhom e buscar conter os
exageros cometidos em nome da paixão. Mesmo na época o referido autor
encontrou críticas que apontavam os seus posicionamentos ideológicos de
natureza pessoal, mas no Brasil acabamos por não tomar conhecimento de tais críticas.
Autores como Cavalcanti (1984) e Bracht (in Oliveira 1987) fizeram deles, as palavras de Brohm e passam a trabalhar a idéia de que a educação pelo esporte serviria ao capitalismo e que com a superação da sociedade capitalista ele, o esporte, tenderia a desaparecer. Tal argumentação causou um verdadeiro impacto na intelectualidade da época, por diversas razões, dentre essas o fato de que ainda era bastante viva a idéia do projeto de educação física e esporte dos governos militares, projeto este que insistíamos em superar. Esses conceitos foram aos poucos conquistando adeptos e, talvez a compreensão fragmentada daqueles que consumiam esses conhecimentos, tenha feito surgir uma linha de atuação disposta a execrar o esporte, nas discussões relacionadas à Educação Física Escolar e a repelir o tratamento de aspectos biológicos e funcionais nessa área.
O ideário, dito, “humanista”, posteriormente “progressista”, “crítico-superador”, foi aos poucos atingindo os professores, e a didática da educação física, sobretudo das escolas públicas[1], foi se afastando do conteúdo específico da área e, por falta de um substituto equivalente, foi caindo no atendimento da vontade do aluno, na recreação pela recreação, ou no soltar a bola, na conhecida prática de futebol para os meninos e queimada para as meninas.
Na pesquisa que realizei
em escolas estaduais e que culminou na minha tese de doutorado (Medeiros 2002),
a maioria absoluta das aulas observadas foi no estilo laisser faire, e os
professores entrevistados não estavam seguros da finalidade da educação física
no currículo escolar. Um outro aspecto estudado na tese foi o documento dos
PCNs da educação física em comparação com os de outras disciplinas em que
ao analisar o discurso empregado na elaboração dos objetivos da educação física
nos diferentes níveis, a conclusão foi que, mais preocupados com valores
morais, esses objetivos não deixam claro qual é a especificidade dessa
disciplina.
Trago um exemplo concreto desse
afastamento que, ao meu ver, ocorreu por uma louvável preocupação com a formação
crítica e que acabou por relegar a especificidade a um segundo plano. Estou
trabalhando com um grupo de alunos na prática de ensino que na prática se
viram sem instrumentos para trabalharem determinados conteúdos da educação física
escolar, conteúdos estes constituídos como disciplinas no currículo da graduação.
Ou seja, nesse caso específico os alunos estão ensinando o que não sabem. Na
tentativa de apontar um outro caminho de busca, chamei a atenção para uma
segunda disciplina dita “prática” (já que a primeira havia falhado), que
poderia oferecer o reforço necessário para a atuação desses alunos e, em uníssono,
me responderam que o conteúdo daquela disciplina havia sido trabalhado apenas
com “textos críticos e filosóficos relacionados ao corpo”. De acordo com a
leitura que faço, este é um exemplo inconteste de que não existe ensino crítico
sem ensino.
O que pretendo mostrar é que, se
por um lado, avançamos no sentido de superar a exclusividade da abordagem biológica
no estudo do humano, por outro lado, retroagimos na medida em que não estamos
ensinando nada e que os conteúdos ministrados nas aulas de educação física
atendem às conveniências dos professores e/ou das escolas, como também ficou
demonstrado na pesquisa citada. (Medeiros 2002).
Por razões obvias, vejo hoje os
centros de formação de professores como verdadeiro lócus de transformação,
por vários aspectos. Dentre esses aspectos pode-se afirmar que, além da formação
inicial, podem ser realizados projetos para a formação continuada dos seus
profissionais, a partir de processos investigativos dos fundamentos científicos,
epistemológicos e didáticos da educação física. Tais centros devem garantir
que os seus alunos tenham domínio dos conceitos básicos da área e que possam
converte-los em matéria de estudo, o que demanda uma intencionalidade educativa
na medida em que o ensino não pode ser visto como um armazenamento de conteúdos,
mas sim como o desenvolvimento das distintas funções do pensamento, ou seja, o
ensinar a pensar. Ou, como na perspectiva de Monereo (2001) [...] pensar bem a partir dos conteúdos do currículo,
não somente porque pensar bem supõe conhecer os conteúdos sobre os quais se
pensa, mas também porque esses conteúdos determinam a forma em .que se pensa. (p.6)
Fazendo minhas as palavras de Libâneo
(2001), eu digo aqui que a explicitação do objeto é imprescindível
para a discussão dos aspectos pedagógicos de um campo de estudos [...]
é condição para se
formular uma fundamentação epistemológica e metodológica da pedagogia da
educação física.
Nesse
caso, é premente que retomemos a discussão a respeito do objeto de estudo da
educação física, a partir de uma visão abrangente do humano, como no
materialismo dialético, mas sem os exageros ideológicos já registrados. Desde
que surgiram as ciências modernas ou as primeiras áreas de estudo, foram sendo
feitos recortes que viessem dar conta da magnitude de se estudar o humano frente
à natureza. Foi assim com o surgimento da medicina, antropologia, sociologia e
etc, cada qual com sua epistemologia, seu objeto específico. E a educação física,
seguramente, é um recorte do recorte-educação, sobretudo se entendemos educação
como [...] uma prática social pela qual seres humanos adquirem aquelas
características humanas e sociais necessárias para a vida em sociedade (Libâneo
2001 p. 3).
Uma
vez considerando a educação física como parte deste contexto, o seu objeto de
estudo não pode prescindir do movimento humano, sob pena dessa disciplina não
encontrar a sua razão de existir. É bem verdade que não se pode estudar esse
movimento em si, a partir de uma ciência que estuda o movimento dos corpos, mas
sim considerar a sua complexidade histórica, social e cultural.
Nesse caso eu caio, mais uma vez, na
frase que há algum tempo vem embalando o meu discurso, que é a frase simples e
abrangente relacionada à competência para ensinar, que é: para ensinar grego
a João é preciso saber grego e conhecer João. E trazer para esse espaço, a
discussão de que sem essa perspectiva abrangente vamos esbarrar sempre em
fragilidades, como as que vivenciamos ora nos preocupando exclusivamente com o
grego, ora exclusivamente com o conhecimento de João, ou especificamente no
caso de uma aula de educação física, ministrando conteúdos específicos,
como o esporte, sem nenhuma intervenção crítica, ou trabalhando textos filosóficos,
na perspectiva de se formar um indivíduo crítico, sem nenhuma sinalização em
direção ao conteúdo específico. Dois extremos de um mesmo problema que
carecem de um momento de síntese.
Bibliografia:
BRHOM,
Jean-Marie (1987). Sociologia Política del Deporte. Barcelona: Gustavo Gili.
CAVALCANTE,
Kátia B. (1984). Esporte Para Todos. São Paulo:IBRASA
LIBÂNEO,
José Carlos (2001) A Dimensão Pedagógica da Educação Física: Questões Didáticas
e Epistemológicas. Conferência XII CONBRACE. Caxambu-MG.
MEDEIROS,
Mara (2002). Problemática de la Educación Física em lãs Escuelas Estatales
de Goiás: Uma Estratégia de Solución. Tese de Doutorado. La Habana: ISCMF.
MONEREO,
Carlos (2001). Estratégias Para Aprender a Pensar Bien. www.educacionmarista.com
OLIVEIRA,
Vitor M. (1987). Fundamentos Pedagógicos da Educação Física. Rio de Janeiro:
Ao Livro Técnico.
* Palestra proferida no GT6 – Educação Física – 1o. EDIPE – Goiânia-Go – 01/12/03
**
Doutora em Ciências Pedagógicas – Havana-Cuba / Professora Didática e
Prática de Ensino FEF/UFG
[1]
A escolas particulares, ao longo dos anos, vêm oferecendo modalidades
esportivas como sinônimo de educação física, na perspectiva de atenderem
as expectativas do mercado e atrair uma maior clientela.