DIDÁTICA
E PRÁTICA DE ENSINO EM PSICOLOGIA DA
EDUCAÇÃO: A DISCUSSÃO ATUAL*
Prof.
Dr. Marcos Corrêa da Silva Loureiro**
Afinal, o que vem a ser
um professor na ordem das coisas? (Jorge Amado, em Gabriela Cravo e Canela)
Se
entendermos a didática como disciplina voltada para as questões do ensino em
sua totalidade, ou seja, no que diz respeito ao quê ensinar, ao como ensinar e,
finalmente, ao como aferir o que se ensinou, temos de compreendê-la, em sua
generalidade, como disciplina em constante processo de mudança, em função das
características necessariamente históricas e, por isso, políticas, da
atividade docente. A seleção dos conteúdos a serem ensinados, que comanda as
outras duas dimensões, é determinada, em diferentes períodos históricos pela
resultante da correlação de forças entre os diferentes interesses em conflito
na base social da sociedade, que vão, a cada momento, configurando o modo de
ser da disciplina no que toca aos seus objetivos, aos seus conteúdos, à sua
metodologia de ensino e à sua avaliação. Assim, é no tocante à Didática de
todas as disciplinas-objeto dos diferentes cursos de licenciatura, que, há
algum tempo, são disciplinas cujo ensino tem tido tradicionalmente lugar
garantido no ensino fundamental e médio e, ao que parece, por referirem-se a
conhecimentos que, no campo científico, merecem lugar de maior destaque do que
a Psicologia, por exemplo, ainda o terão por muito tempo ainda.
A
Didática e Prática de Ensino de Psicologia da Educação, portanto, quando
comparada às suas congêneres neste Encontro, estão em uma situação
diferenciada, pois o ensino de Psicologia no ensino médio, circunscreve-se,
salvo engano, aos cursos de Magistério. Apesar do sopro de sobrevida que
recente parecer do Conselho Nacional de Educação ofereceu aos cursos de magistério
em nível médio, a formação do professor em nível de terceiro grau é uma
realidade com tendência a se generalizar e o último reduto do ensino de
Psicologia no ensino médio parece estar com os seus dias contados. Assim, além
de nos preocuparmos com o quê ensinar, com o como fazê-lo e como avaliá-lo,
coloca-se para nós um questão primeira: a quem ensinar Psicologia na educação
básica.
É
bem verdade que, apesar de, como bem o observa Íris Barbosa Goulart, a história
da Psicologia no Brasil parecer derivar da história da Psicologia da Educação,
o interesse da área de Psicologia pela educação, tanto teórica quanto
praticamente tem decaído, desde o reconhecimento da profissão de psicólogo em
1962. Nos cursos de Psicologia, têm predominado habilitações com maior valor
simbólico no mercado, como a Psicologia Clínica e a chamada Psicologia
Industrial; o interesse maior pela Psicologia da Educação encontrando-se mesmo
é na área da Educação, tanto a que se ensina dos cursos de Licenciatura em nível
de terceiro grau quanto a que ainda é ensinada nos cursos de magistério
remanescentes em nível médio.
Nossa
reflexão aqui hoje, não vai, portanto realizar-se sobre a Didática e Prática
de Ensino de Psicologia da Educação, disciplina que, parece ter seus dias
contados. Mas vai focalizar um aspecto que, embora central, por força da freqüente
desvinculação que temos estabelecido em educação entre conteúdo e forma,
tem sido freqüentemente desleixado em didática, que é o conteúdo a ser
ensinado na disciplina objeto das didáticas específicas, no caso, a
Psicologia. O quê ensinar em Psicologia da Educação?
Mesmo porque trata-se de uma disciplina, que embora possivelmente com os
dias contados na formação de professores em nível médio, parece estar com
grande fôlego na formação de professores em nível superior.
Quando
uma disciplina se enquadra em um currículo de formação profissional, é muito
comum que seja tratada de forma bastante pragmática, ou seja, sempre se
pergunta qual será sua importância na prática do futuro profissional e, freqüentemente,
é em função da pergunta a que serve
para a formação do profissional? que os conteúdos são pensados e
delimitados. Podem-se
delimitar na historia da educação brasileira três momentos em que esta questão
foi respondida diferentemente: o primeiro, que começa pouco antes de 1930
terminando em 1945; o segundo, que começa próximo de 1945, com a redemocratização,
e termina no final da década de 70, com a derrocada do regime militar; um
terceiro, que começa com a redemocratização e se estende até o presente.
Para concluir apresenta-se a proposta de uma abordagem, a das Representações
sociais, como uma possibilidade a mais no momento presente.
Na
prática, na história da educação brasileira, a psicologia só passa a ter
importância na formação do professor quando começa a existir preocupação com a qualidade efetiva da educação elementar,
traduzida em exigências de preparação escolar específica com vistas à
habilitação para o magistério, o que só acontece com o início do processo
de industrialização que desembocou na revolução de 30, quando se passa a
exigir da escola a formação de uma mão-de-obra que domine conhecimentos
somente transmissíveis via-escola. Nasce daí a preocupação com uma Pedagogia
voltada para bases científicas, em especial de cunho psicológico, quando a
formação de professores começa a sintonizar-se da com as ciências que
fornecem conhecimentos a respeito da sociedade e também sobre o homem enquanto
ser individual, especialmente quanto aos mecanismos de aprendizagem (Cunha,
1995:36).
Se,
para o início do processo de industrialização, a consideração do educando
como peça chave nesse processo era respondida pelo psicologismo
da Escola Nova, à medida que o processo avança, ele é posto em questão e
considerado como um dos responsáveis pela baixa qualidade do ensino e como força
conservadora e resistente ao movimento necessário de modernização da educação,
que deveria promover, simultaneamente e sem contradição, o desenvolvimento e a
maximização da produtividade e dos lucros, ajustando os objetivos do ensino às
demandas do sistema social.
Como
solução para o que era percebido como deficiências da escola, o discurso
desenvolvimentista presenciado a partir do fim da década de 60 levou à adoção
da tecnologia educacional, adaptada às exigências e às possibilidades das ciências
e das técnicas modernas. O essencial era implantar um conjunto de dispositivos
técnicos capaz de promover mudanças de comportamento: da Psicologia de cunho
cognitivista da Escola Nova à Psicologia comportamentalista, dos fatores
internos responsáveis pelo conhecimento ao controle das variáveis externas,
das quais o comportamento é função.
Com
os primeiros sinais de esgotamento do milagre
econômico brasileiro que o tipo de desenvolvimento adotado pelo Brasil
propiciou, começa a processar-se no país a distensão política e, no âmbito
da produção intelectual, isso implicou o aparecimento de concepções teóricas
divergentes, que, durante aqueles anos, exatamente para que as concepções
coerentes com os interesses contemplados pelo modelo adotado pudessem florescer,
foram fortemente represadas.
Nesse
contexto, no âmbito educacional ganharam destaque as teorias da reprodução,
considerando a educação e todo conhecimento a ela vinculado, inclusive o da
psicologia, como reprodutores das desigualdades que caracterizam a
sociedade capitalista, passando a ganhar destaque no campo da educação,
teorias e práticas que visam aos interesses das classes subalternas até então
relegadas pelo tipo de desenvolvimento social adotado. O Psicologismo passa a
ser entendido como a expressão dessa tendência e é colocado como algo a ser
superado no campo da Psicologia da Educação.
A
partir desse momento, quando se rompe a hegemonia no tocante às concepções em
Psicologia da Educação, após curto período de crítica às concepções
psicologistas, assiste-se, por um lado, ao rearranjo das concepções consoantes
com os novos interesses da acumulação do capital, concebendo a
Educação como meio de propiciar a construção do conhecimento pelo
indivíduo, mas que na realidade, destina-se a formar um novo trabalhador
exigido, hoje, pelo processo produtivo.
Por
outro, uma perspectiva explicitamente presente na área educacional, a de
emancipação das classes subalternas, ganha força e o fracasso escolar das
crianças originárias dessas classes passa a primeiro plano nas preocupações
da área e, na busca da construção dessa possibilidade, passa-se a considerar
de fundamental importância inserir o professor na concretização das ações
que redundassem na superação efetiva das condições de dominação em que,
através de uma educação reprodutora, encontravam-se relegadas as classes
subalternas.
Evidentemente,
as duas perspectivas não se constroem isoladamente sem que influências recíprocas
se façam sentir. Do ponto de vista dominante, a formulação teórica deve
levar em conta a necessidade de, ao menos no discurso, os interesses dominados
estarem explicitados; do ponto de vista emancipatório, a dificuldade freqüente
de aperceber-se das ressignificações que os termos e expressões, muitas vezes
apropriados a essa perspectiva, ganham nas formulações dominantes.
Significativamente
representativa desse processo, marcado por uma rearticulação da burguesia a nível
mundial, manifesta na ideologia neoliberal, ressurge no âmbito educacional o
que Giroux (1986) denominou a Ideologia da Interação, em sua vertente
cognitivo-evolutiva, representada pelas teorias do construtivismo psicológico,
principalmente o de Piaget, mas também uma versão fundamentada nos escritos de
Vygotsky, em que a preocupação do professor deve estar mais ligada ao
desenvolvimento cognitivo e à produção do conhecimento do que à aquisição
de conteúdos.
Ao
invés de simples resultante de estímulos externos, a aprendizagem passa a ser
vista como resultante da interação entre pessoa e mundo objetivo e a questão
da construção do significado do material aprendido constitui a problemática
do conhecimento no interior desta ideologia. Embasa-se teoricamente o
construtivismo, corrente pedagógica ainda com força nos dias que correm
vigorando numa perspectiva oposta à da educação centrada no conteúdo, e
apresentando-se também como revestida de caráter transformador e emancipatório
do indivíduo. É a ideologia apresentando como transformador o que, de fato, é coisa sua, mantenedora do status
quo, de modo a fazer que por mais que as mudassem, mais elas permanecessem
como estavam.
É
dentro dessa realidade que, me parece, a Psicologia da Educação acadêmica
ainda se debate, na busca sempre complexa de separar o joio do trigo: entre a crítica
permanente à ressignificação operada pela ideologia - aí consideradas certas
abordagens da psicopedagogia, que, de certa forma, sublinham a origem individual
dos problemas de aprendizagem - e a possibilidade de apropriar-se do potencial
emancipatório da Psicologia historicamente produzida.
Até
aqui, nos diferentes momentos desta história, não se tem conseguido sair das
malhas de uma perspectiva que compreende o aluno como o foco da psicologia da
educação. Quase sempre os programas se voltam para conhecimentos que se
revelem de aplicação garantida na atividade docente no sentido de transformar
o aluno de ser sem instrução em ser escolarizado, não se levando em conta que
a educação é atividade que se realiza na relação entre homens concretos,
relação que é determinante na construção do conhecimento tanto de um quanto
de ouros.
Uma
alternativa que supere essa compreensão deve voltar-se, necessariamente, para
as condições objetivas dos professores e alunos como sujeitos da educação,
de sujeitos cognoscíveis através das relações sociais que conformam seu
mundo particular, sujeito, como dizem Ezpeleta & Rockwell,
“não por tratar-se de um ‘indivíduo’, mas pelo caráter histórico e
específico daquelas relações” (p. 1989:23-24).
Os
conhecimentos, com efeito, não são autônomos frente aos sujeitos sociais
entre os quais são veiculados, e estes sujeitos não são neutros frente à
correlação das forças sociais, frente às relações de poder constitutivas
da sociedade no seio da qual vivem.
Faz-se
necessária, pois uma abordagem psicológica que compreenda como os aspectos da
vida concreta tanto do professor como dos alunos influenciam no processo de
ressignificação dos conteúdos escolares de forma às vezes insuspeitada pela
própria escola. É em uma tal abordagem que a das Representações sociais
pretende se constituir, buscando lançar bases teóricas para a compreensão das
mediações existentes entre os determinantes materiais e a prática concreta e,
conseqüentemente, da apropriação que tanto professor quanto alunos realizam
dos elementos por eles considerados importantes à sua vida, ao seu pensar e ao
seu atuar.
A
expressão representações sociais designa uma forma de conhecimento que tem
como fundamento a vida quotidiana, referindo-se, portanto, ao âmbito dessa
vida. Seu critério de verdade é sua capacidade de dar conta das questões
emanadas desse viver: quanto melhor responda aos problemas aí propostos, mais
verdadeiro para os homens esse tipo de conhecimento é. Difere, pois, de outras
formas de conhecimento, como a ciência, a filosofia, a religião, a arte, que,
atendendo a objetivos alheios à cotidianidade, têm critérios de verdade
diversos; às vezes até opostos a ela.
Não
raro, essa definição pode induzir, grosso
modo, a uma identificação das representações sociais com o senso comum
e, por isso, uma questão logo se coloca: a da importância de tal conhecimento
para a formação de professores quando o que se busca na escola é exatamente
desenvolver nos alunos a capacidade de superar o senso comum em direção ao
conhecimento científico, à educação artística e à consciência filosófica,
possibilitando-lhes, com isso, a apropriação da cultura produzida na história.
No
entanto, trata-se de uma falsa questão. Primeiro, porque essa identificação
se faz de um ponto de vista da ciência, referência de conhecimento que melhor
dá conta do real, carregando para as representações sociais a depreciação
com que o senso comum é julgado quando comparado àquela; como conhecimento de
segunda ordem, de qualidade inferior. Tendo em vista os objetivos que a ciência
persegue, esta é a verdade, mas também não deixa de ser verdade que, para uma
mentalidade exacerbadamente cientificista, que nesse sentido se identifica com
uma perspectiva objetivista própria das ciências exatas e da natureza, nenhuma
outra forma de conhecimento tem valor, apesar de forma de objetivação humana.
As ciências humanas, no entanto, não podem desconsiderar que as diferentes
formas de conhecimento, mesmo as não científicas, são objetivações humanas
e, por isso, integram o seu objeto. E, na qualidade de objetivação humana,
como mediação última entre as determinações materiais e a prática
concreta, as representações sociais são uma forma específica de conhecimento
cujas condições concretas de produção necessitam ser compreendidas, sob pena
de não se reconstruírem teoricamente os mecanismos de produção da prática
social. Assim, mesmo que sua identificação com o senso comum fosse verdadeira
– o que não é verdade, tanto pela conotação objetivista que a expressão
carrega, quanto pelo fato de que senso
comum é um rótulo geral que não dá conta das especificidades das
diferentes manifestações que o constituem - sua compreensão continuaria
fazendo sentido para a formação de professores, pois ajudaria, talvez, a
entender o fracasso a que a escola tem sido sistematicamente conduzida na tarefa
que lhe cabe de lidar com a transmissão de outras formas de conhecimento.
Formulada
inicialmente pelo psicólogo social romeno radicado na França, Sèrge Moscovici,
a teoria das representações sociais refere-se a um conhecimento cuja função
é muito importante na condução da vida e, por isso, influencia decisivamente
o modo de os homens assimilarem o conhecimento produzido nas esferas que
transcendem a cotidianidade. Ao primeiro contato, contudo, a expressão representação social pode evocar tudo, menos forma de
conhecimento, pois nem sempre é fácil imaginar em que sentido uma forma de
conhecimento possa ser representação e, além disso, uma representação
social.
Aqui,
conhecimento não pode ser entendido como a adequação objetiva das coisas à
imagem que dela fazem os homens, até porque esta é uma possibilidade não dada
historicamente, ou seja, a certeza de que o concebido como real corresponde
exatamente ao que esse real de fato é. Isto porque, sendo o conhecimento o
produto de uma relação entre sujeito e objeto, existem características tanto
do pólo subjetivo quanto do pólo objetivo que fazem dele uma obra histórica,
em constante construção. Tanto os homens, sujeitos, quanto os objetos a serem
conhecidos estão na dependência da ação dos próprios homens o que, de início,
torna impossível a perfeita adequação das coisas à imagem que
intelecutalmente delas se faz, adequação que já foi defendida como finalidade
precípua do conhecimento e, de certa forma, ainda no presente, não raro
postulada como o objetivo último da ciência. Ignora-se ao se postular essa
adequação que o verdadeiro conhecimento se constituir-se em cópia autêntica
da realidade porque esta realidade não é alheia à ação dos homens e esta ação,
no exato momento em que se busca entender a realidade, continua exercendo influência
sobre esta realidade.
Para
os propósitos da presente discussão, pode-se considerar o conhecimento como um
modo determinado de os homens – sujeitos do conhecimento – inserirem as
coisas e pessoas do mundo em um sistema de relações de modo a tornar o mundo
compreensível, com significado para eles. Dito em outras palavras, é organizar
o mundo de tal forma que a vida nele se torne possível, o que não aconteceria
se ele continuasse indefinidamente percebido como caos. Entendido desta forma, o
conhecimento é construção de homens concretos para viverem em um momento histórico
determinado.
Quando
se observam homens adultos pensando e se comunicando, essa ação – de
conhecer – não nos parece mais do que movimento do pensamento. No entanto,
nem na história da humanidade nem na biografia particular de cada ser humano
isso tem sido sempre assim. Essa inserção das coisas e pessoas em um sistema
de relações que torna o mundo inteligível e com significado é atividade
decorrente da exigência de o homem adaptar-se a esse mesmo mundo. Piaget
(1974), diria que o conhecimento é o prolongamento da adaptação meramente
biológica, da qual ele se origina.
Nesse
sentido, até um determinado momento de suas vidas, os animais humanos
compartilharam com os não-humanos formas comuns de conhecer, baseadas nas ações
que realizavam sobre esse mundo; uma forma de conhecer totalmente calcada na
experiência, cujo resultado não podia ser comunicado aos outros. Algo
essencial aconteceu, no entanto, nessa biografia compartilhada entre humanos e não
humanos, que fez dos primeiros seres definitivamente distintos: o fato de terem
começado a reproduzir, por meio do trabalho, as condições materiais que
tornaram possível a sua subsistência. E como os homens sempre dependeram uns
dos outros para sobreviverem, houve um momento nessa história, com toda certeza
ligado à invenção dos instrumentos de trabalho e às suas necessidades de
comunicação no processo de trabalho, em que eles inventaram os primeiros
signos, os instrumentos psicológicos, como Vygotsky (1984) os denominou, que,
mais tarde, vieram a constituir-se na linguagem tal como atualmente a
conhecemos. A invenção da linguagem foi o verdadeiro “pulo do gato”, que,
do ponto de vista psicológico, vem diferenciar os homens dos outros animais.
Quando
observada como sistema de significações compartilhado por determinados
homens numa sociedade determinada, a linguagem não revela o seu processo de
constituição, nem do ponto de vista social, coletivo, nem do ponto de
vista individual, particular. Significado e significante parecem‑nos
ligados por elos extremamente arbitrários, de modo que determinado
objeto parece-nos poder, perfeitamente, ser denominado por qualquer nome distinto
daquele pelo qual o é. No entanto, quando se observa o processo histórico
de constituição da língua, encontram‑se razões que levaram os
falantes de uma determinada língua a denominarem um determinado
objeto ou ação por uma palavra determinada e somente por ela, não podendo sê-lo
por outra. Tal é o caso de palavras que, quando observadas sua origem histórica,
denotam as razões de significarem o que significam e, do ponto de vista
individual, termos que as crianças inventam para designar determinados objetos
e ações que encontram sua significação na experiência particular vivida em
que imita sons contingentes a essas experiências.
A
linguagem só aparece em determinado momento da história e na biografia
indivídual porque as relações que os homens vinham estabelecendo com o
mundo e entre si resultaram na construção de estruturas mentais que,
sustentando a intervenção de uma função semiótica, simbolizadora,
tornaram possíveis ao homem representar
mentalmente as situações vividas (no exato sentido de re + presentar, ou
seja, trazer de novo ao presente). A intervenção da função semiótica
vai permitir ao homem a simbolização, elemento basilar da constituição
da linguagem, que depende, pois, das mesmas estruturas mentais que sustentam
o pensamento e, a partir do momento em que aparece, a um só tempo que interfere
na ultrapassagem daquelas estruturas por possibilitar um novo tipo de intercâmbio
do homem com o mundo, depende dessa ultrapassagem para desenvolver‑se;
o desenvolvimento da linguagem torna‑se, pois, solidário ao
desenvolvimento do pensamento, com o qual caminha a par e passo.
Isto
implica que a partir do momento em que a linguagem articulada é inventada, a
atividade da representação torna-se a forma por excelência de produção do
conhecimento, que antes dela limitava-se à ação. É, pois, uma marca da evolução
dos homens o uso da sua capacidade representativa para produzir conhecimento:
ele já não necessita repetir a experiência dos outros homens para
beneficiar-se dela como forma de organizar o seu mundo. Antes do advento da
linguagem, a forma de os homens conhecerem o mundo, estreitamente ligada à ação,
constituía-se em uma forma de conhecimento prático, que eles compartilhavam
com os outros animais e que as crianças, antes da aquisição da linguagem,
ainda hoje compartilham. Mas, a partir do momento em que a função semiótica
entra em ação, mesmo que os homens continuem utilizando o conhecimento prático,
possuem agora a possibilidade do conhecimento representativo, que amplia ao
infinito as suas possibilidades de organizar o meio para nele viver
satisfatoriamente.
É
com base na capacidade de representar a realidade, de fazê-la de novo
mentalmente presente, que as diferentes formas do conhecimento verdadeiramente
humano são construídas: o senso comum, a consciência filosófica, o
conhecimento científico como também a representação social. É com base na
capacidade de representação que os homens tornaram possível a armazenagem do
conhecimento e sua transmissão tanto para outros homens no presente como para
as gerações futuras: a partir do advento da linguagem, possibilitada pela
representação, não é necessário mais reinventar o que já foi inventado nem
em espaços nem em tempos diferentes do aqui e agora: os homens já podem
valer-se da experiência uns dos outros, tanto no presente como as das gerações
anteriores, para continuar organizando o seu mundo presente.
Bem,
o homem isolado é simplesmente uma abstração; não existe e, de fato, nunca
existiu.; ele é um ser essencialmente social (Marx e Engels, 1977), fato que
traz como implicação que todas as características humanas são adquiridas na
sua vida em sociedade. Logo, também sua capacidade de representação bem como
todo o conhecimento representativo, que dela decorre. Todas essas formas de
conhecimento carregam as marcas da sociedade em que são produzidas, são formas
de conhecimento representativo socialmente construído, são representações
sociais. A denominação representações
sociais atribuída a apenas uma dessas formas não é, portanto, tomada
desse ponto de vista, bastante precisa. Mais adequado seria denominá-la, por
exemplo, representações cotidianas,
tendo em vista sua função de atender a necessidades brotadas na cotidianidade.
No entanto, o que se ressalta com esta denominação é que essas representações,
como nenhuma das outras, são criadas e recriadas pela totalidade dos membros de
um determinada formação social, sem que qualquer parcela dessa formação
detenha a exclusividade de sua produção. Enquanto encontramos na sociedade
setores responsáveis pela produção da ciência, da filosofia, das artes, etc,
grupos cuja produção da própria sobrevivência é mediada por esta produção,
diferentemente, não há, na sociedade, qualquer setor responsável pela produção
das representações sociais: elas aparecem, reaparecem, transformam-se ou
desaparecem como obra anônima de qualquer membro da sociedade. É nesse sentido
que elas são obra coletiva, socializada. Sofrem a influência, é claro, da
ideologia dos grupos e classes que dominam na sociedade, uma vez que, sendo
sociais, expressam a realidade de que as idéias das classes dominantes em uma
sociedade são sempre as idéias dominantes (Marx e Engels, 1977), mas portam
sua marca própria, não demonstrando com aquelas identificação total. Apesar
da dominação de classe, um mesmo objeto social possui significados diferentes
para diferentes grupos que, por isso têm dele diferentes representações. O
estudo pioneiro de Moscovici, A Psicanálise:
sua imagem e seu público[1],
sobre a representação social da Psicanálise, mostra bem isso: para a
sociedade francesa da década de 50, a se julgar pelas representações
encontradas, não se tratava de uma, mas de várias Psicanálises, muito embora
o objeto da representação fosse um só.
A
razão disso é muito simplesmente a que nos levou a enveredar por essas reflexões
sobre o conhecimento: conhecer é inserir as coisas e pessoas em um sistema de
relações para tornar o mundo com sentido e significado. E como as representações
sociais têm por função responder às demandas da cotidianidade, um mesmo
objeto social será representado segundo sua maior ou menor importância para a
continuidade da vida cotidiana do grupo em questão.
Se
há uma característica marcante que se pode atribuir à vida cotidiana é a
irreflexão (Heller, 1982). E isto dito sem qualquer conotação depreciativa,
pois a manutenção da vida exige a automatização de determinadas ações que
tornam possível aos homens dedicar-se a outras atividades igualmente
importantes. É bem conhecida a expressão o
hábito é nossa segunda natureza, às vezes contestada com a afirmação de
que o hábito – entendido com atividade aprendida – é nossa verdadeira
natureza, uma vez que todos os comportamentos
humanos são aprendidos. Não há, com efeito, um comportamento do ser
humano adulto que se possa dizer seja obra exclusiva da natureza. Todos são
aprendidos e alguns deles se tornam hábitos. E o que é habituar-se senão
livrar-se da necessidade de estar a cada momento refletindo sobre o que deve ou
não ser feito?
A
economia de ações é outra característica necessária para a continuidade da
vida cotidiana para a qual a formação de hábitos contribui de forma exemplar.
E, é claro – agora somos capazes de entender isso – essa formação de hábitos
independe da experiência própria: ela pode ser-nos transmitida em ampla medida
pelos hábitos e costumes do grupo social a que pertencemos e são acompanhadas
das explicações que esse grupo social lhes confere. A eles estamos a tal ponto
habituados e desde tão cedo, que chegamos a pensar que o modo como
representamos a realidade seja o único possível. Um conjunto de representações
formado dessa maneira integra o núcleo das representações que os homens fazem
da realidade, que têm, por isso, uma resistência muito grande à mudança.
Exatamente porque se formaram em um estágio da vida humana no qual a reflexão
ainda não era possível e continuam se mostrando úteis para a continuidade da
vida cotidiana no interior do grupo social. Integram esse conjunto de representações
preconceitos, juízos e valores, carregados de conteúdo afetivo, que se
aprenderam como formas únicas e definitivas de interpretar a realidade e que
constituem representações extremamente significativas para a continuidade da
vida.
Por
outro lado, faz parte da própria continuidade da vida o pertencimento a grupos
sociais além da família, a partir da socialização secundária iniciada, por
exemplo, com a entrada na escola. Há, pois, significações oriundas de outros
grupos, que passam a compor os nossos sistemas de significações,
incorporando-se às originalmente aprendidas. Pelo fato de essa incorporação
acontecer em fase mais recente de nossa existência, menos sujeita às determinações
afetivas e mais passíveis de reflexão, a natureza dessas últimas irá variar
de acordo com o que é percebido como sua importância para a continuidade da
vida, podendo, por isso, variar da extrema labilidade à extrema resistência.
O
núcleo primitivo de representações constitui uma espécie de matriz à qual são
incorporadas novas representações, seja de que tipo forem. É a esse núcleo
que se realiza o que Moscovici (1978) denominou a ancoragem
do novo, que passa, assim, por uma remodelação que o torne compatível com
o já existente, mesmo que essa remodelação implique, às vezes, completa
descaracterização do novo. Moscovici encontrou, por exemplo, representações
da Psicanálise como uma espécie de “confissão” dos católicos. É claro
que entre as duas realidades existem similaridades, o que torna possível a
ancoragem: provavelmente, o fato de se contarem segredos a outra pessoa
investida de poder para ouvi-los e, por meio deste processo, livrar-se da culpa.
Mas, evidentemente, apesar das semelhanças, trata-se de dois processos
absolutamente distintos. Pela ação das representações sociais, os homens têm,
portanto, uma força insuspeitada de moldar à sua maneira os novos
conhecimentos com os quais se vêm confrontados e o fazem até que esses novos
conhecimentos se encaixem satisfatoriamente nos seus próprios sistemas de
explicação da realidade.
O
que até aqui já foi dito é suficiente pra se suspeitar que existe relevância
no conhecimento das representações sociais para a formação de professores. A
teimosia do fracasso em permanecer em nossas escolas tem-nos levado a pensar que
não se pode continuar a explicar como antes o que continua existindo no Quartel
de Abrantes. Tem-se buscado de há muito conscientizar os professores da
necessidade de se desenvolverem novas formas de lidar com o conhecimento, com
suas formas de transmissão, com novas metodologias de ensino. A preocupação
de desenvolver no professor novas competências que o tornem capaz de
desincumbir-se de sua difícil tarefa de transmitir a contento os conhecimentos
produzidos e acumulados pela humanidade tem sido uma constante entre os responsáveis
pelos sistemas educacionais.
Até
mesmo já se encontra formada uma nova representação de que o professor nada
mais é do que um facilitador da aprendizagem e que o verdadeiro responsável
pelo aprendizado é o aluno. Representação muitas vezes balançada pelo fato
de que, apesar de tudo, o esperado aprendizado não se efetua. Não é nova também
a postulação de que algum aprendizado sempre existe, uma vez que aprender é
contingência da existência humana, já que nenhuma sabedoria foi dada aos
homens prêt-à-porter pela natureza. O desconcertante é que muitas
vezes, muitas mais do que se deseja, dentre esses aprendizados não se encontra
aquele almejado pela escola.
A
abordagem das representações sociais pode trazer uma nova luz sobre a
compreensão dessa questão, muito embora ainda não existam absolutamente as
respostas. Apesar de ter como missão principal lidar com a transmissão do
conhecimento, a Escola é campo propício para o estudo da influência das
representações sociais sobre a prática que se realiza no interior dos seus
muros. Tanto professores quanto alunos são sujeitos sociais, cujas relações
com o conhecimento e sua transmissão estão mediadas pela importância deles
para os processos concretos de vida tanto de uns quanto de outros no interior
dos grupos sociais em que concretamente produzem suas vidas.
Não
é em função de interesses percebidos como relacionados à cotidianidade de
todos os homens que o conhecimento científico, o artístico e o filosófico,
que, em última análise, são os que têm a sua transmissão almejada pela
escola têm sido produzidos. Em alguns aspectos, atendem, sim, aos interesses da
maioria, mas de forma tão mediatizada que essa relação não é percebida em
sua inteireza nos limites da vida cotidiana. Apesar, por exemplo, de a maioria
da população conferir importância efetiva à escola, isto se dá pela crença,
verdadeira, de que a escolarização propicia ascensão social. Concretamente,
no entanto, esta ascensão deveria ser sempre possível quando o conteúdo
veiculado pela escola fosse apreendido
na sua natureza de conhecimento que supera as representações anteriores.
Mas isto é, muitas vezes, negado na prática dos grupos sociais de
origem dos alunos, que, por isso, não assimilam o conteúdo escolar como
conhecimento qualitativamente distinto dos seus e o utilizam apenas para
confirmar os antigos valores, preconceitos e crenças aos quais o novo se ancora
de forma muitas vezes desfigurada e superficial.
Isto,
talvez, até explique a incidência do fracasso escolar nas primeiras séries,
dada a dificuldade de os pequenos realizarem essa ancoragem no processo de
alfabetização. Pois neste caso não se trata simplesmente de assimilar um novo
conhecimento, mas de aprender uma forma nova de assimilação, forma sem cujo
domínio não há sequer a possibilidade de assimilação modificada de qualquer
novo conhecimento veiculado pela escola.
Em
síntese, este conhecimento não é, necessariamente, percebido na sua inteireza
como algo que atenda a necessidades concretas dos grupos sociais aos quais se
destina. Representa-se a permanência na escola como um fetiche que, por si só,
levaria à ascensão social, o que propicia aos alunos, uma vez bem-sucedidos no
processo de alfabetização, a assimilação do conteúdo escolar apenas no que
diz respeito à necessidade de permanência na escola. Denominar essa
aprendizagem, como freqüentemente se faz, aprendizagem mecânica, não
significativa, é não atentar para a extensão do significado que efetivamente
tem para os processos concretos de vida dos grupos sociais em questão.
Por
outro lado, a escola é também o palco da vida cotidiana do professor, cuja
profissão, por natureza, lida com o conhecimento científico, com o artístico
ou com o filosófico, que, como já dito, não se têm constituído em formas de
organização do mundo em função do que é percebido como necessário à
cotidianidade de todos os grupos sociais, às vezes nem mesmo da maioria deles.
O professor não lida com esse conhecimento, no entanto, da mesma maneira como
lida um pesquisador da sua área de conhecimento; lida com ele na dimensão de
verdades a serem transmitidas, o que, logo de início, pressupõe a relação
com outro ser humano. Em grande parte dos casos, exerce sua profissão em
instituições como é o caso das instituições públicas, nas quais não se
tem atribuído pelos responsáveis, o poder público, valor de uso equivalente
ao que os usuários lhe conferem e, portanto, não se lhe destinam os
investimentos correspondentes. Fica claro que esta é uma situação concreta
propícia à elaboração de representações sociais no interior das quais a
transmissão dos conteúdos escolares e, muitas vezes, esses próprios conteúdos
são representados apenas na natureza e extensão necessárias à continuidade
da vida quotidiana, que, muitas vezes, deixa de contemplar o “autêntico
aprendizado” dos alunos, se por autêntico aprendizado se entender sua
assimilação na qualidade de conceitos, o que de fato são nos limites do
universo conceitual. Parte desta natureza, por exemplo, pode ser o desempenho do
papel expresso no cumprimento formal das funções docentes (Loureiro, 1997) ou
na manutenção da autoridade pedagógica (Bourdieu, 1975).
A
abordagem das representações sociais propicia, assim, novo olhar sobre o que
chamamos de dificuldades de aprendizagem ou mesmo de fracasso escolar e sobre o
que consideramos a necessidade de promover uma aprendizagem “de fato”
significativa (como se houvesse algum aprendizado que não o fosse numa certa
medida), que está na dependência mesma do conhecimento das representações
que as classes sociais de origem dos alunos e os grupos profissionais que atuam
na escola fazem da realidade. Trata-se de ver que a promoção dessa
aprendizagem de fato significativa do ponto de vista dos sistemas de ensino não
se esgota no interior dos muros da escola, mas depende de um conhecimento que,
por certo, ainda está por se construir. E nessa construção, as representações
sociais têm importante papel a desempenhar tanto no que diz respeito à teoria
quanto à prática.
BIBLIOGRAFIA
BERGER, P. & LUCKMAN, T. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1977.
BOURDIEU, P. e PASSERON, J.C. A
Reprodução: elementos para uma teoria dos sistemas de ensino. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1975.
HELLER, Agnes. Cotidiano e História. Trad. de
Carlos Nélson Coutinho. Rio: Paz e Terra, 1982.
LOUREIRO, M.C.S. Magistério
como função pública e compromisso do professor. São Paulo: Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo, 1997 (Tese de Doutorado).
MARX, K.e ENGELS, F. A
ideologia alemã. Trad.de Jose Carlos
Bruni e Marco Aurélio Nogueira.
São Paulo: Grijalbo, 1977.
MOSCOVICI,
S. A representação social da Psicanálise. Rio: Zahar, 1978.
PIAGET,
J. Seis Estudos de Psicologia. São Paulo: Forense, 1974.
VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
*Sessão de abertura do Grupo de Trabalho de Psicologia da Educação no I EDIPE, em Goiânia, no dia 01 de dezembro de 2003.
** Professor de Didática e Prática de Ensino de Psicologia da Educação, docente do Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira e diretor da Faculdade de Educação da UFG.
[1] Traduzido no Brasil, como A
Representação Social da Psicanálise. Cf. Moscovici, 1978.