Glacy Queirós de Roure
O
desejo do homem é o desejo do outro. [...] O sujeito localiza e reconhece
originalmente o desejo por intermédio não só da sua própria imagem, mas também
do corpo de seu semelhante. (Lacan, [07/4/54], 1986,
p.172)
Inicio este trabalho
com a apresentação da obra
“O espelho” de Sirom Franco, cuja densidade interpretativa permite-me
refletir sobre
as relações especulares de desejo, amor
e ódio a serem enfrentadas tanto pelos adolescentes quanto por seus pais
no decorrer da adolescência. Tempo marcado por um duplo estranhamento.
Mas, antes
de continuar, lembro rapidamente o mito de Narciso que ao se deixar seduzir pela
própria imagem refletida
nas águas de um lago, debruça-se sobre esta e deixa-se
morrer. Tal como atesta a lenda de Narciso,
o espelho parece ter em nosso tempo a capacidade de, por si só,
assegurar-nos de nossa beleza, de nossa perfeição, de nossa
completude. É ele que proporciona a ilusão de uma imagem capaz de
certificar, de
que mesmo com o passar dos anos pode-se
continuar belo e desejável
Para a psicanálise, face ao espelho, é como um outro que o sujeito se vê, se observa e se reconhece pela primeira vez, instaurando neste momento um processo contínuo de desconhecimento quanto à verdade de seu ser e a alienação à imagem que irá fazer de si mesmo. Momento designado por Lacan([1949]1998a) como “estádio do espelho”, anterior a entrada no Édipo.
Quanto a tal funcionamento, este só pode
ser compreendido em sua complexidade se considerarmos
o fato de que vivemos em uma sociedade do espetáculo (Debord, 1997) determinada
por uma cultura narcísica na qual o parecer parece conjugar-se ao ter
em detrimento do ser.
É importante destacar que a utilização metafórica do
espelho por Lacan se dá para pensar
o poder formativo da imagem e a estruturação inicial do
psiquismo. Com efeito, a expressão
"estádio do espelho" foi
elaborada para explicar o processo de constituição do “eu” diante
de uma imagem, articulando-o ao conceito de narcisismo operado por Freud. Lacan
afirma que o "estádio do espelho" deve ser compreendido como uma
identificação, uma transformação produzida no sujeito quando ele assume uma
imagem. O que equivale dizer
que uma transformação é produzida no sujeito desde que ele a assume por um
processo de identificação. Fase situada entre o sexto e o décimo oitavo mês,
período caracterizado pela imaturidade do sistema nervoso. [1]
Lacan afirma que será na relação do
sujeito consigo mesmo como um outro mediante uma imagem que
encontraremos a razão de sua constituição. "Eu" que se
constitui inicialmente como "eu ideal", originando, posteriormente,
identificações secundárias (ideal do eu)[2].
Momento em que se pode ressaltar o papel que o
mestre poderá vir a ocupar na vida subjetiva de seu aluno. Questão a
que retornaremos na parte final do trabalho.
Tal "estádio" é antecedido
por um momento pré-especular, no qual a criança vê-se como fragmentada; não
fazendo nenhuma diferença entre seu corpo e o de sua mãe, entre ela e o mundo
exterior. Diante do espelho, carregada pela mãe, ela procura e roga seu
reconhecimento. “Mãe que a olha e reconhece: ‘Sim, és tu, Pedro, meu
filho, que com um ‘és tu’, dará um ‘sou eu’ (Chemama,1995). É do colo
da mãe que imaginariamente a criança antecipa a
forma de seu corpo. É
porque a criança é carregada por uma mãe, cujo olhar a olha, uma mãe que a
nomeia que esta é incluída na família, na sociedade e, no registro simbólico.
A mãe lhe dá um lugar, a partir do qual o mundo poderá ser organizado.
Diante da imagem a criança diz
"eu", um "eu" agora composto enquanto unidade. Momento em
que o pequeno "infante", tomado de amor por si mesmo, constitui-se imaginariamente de forma narcísica.
Eis ai o começo de uma estruturação subjetiva
denominado por Freud ([1915]1990) como narcisimo primário. Este
momento de unificação do
"eu" constitui
a instância do "eu ideal".
É a imagem
especular que dá à criança a forma intuitiva de seu corpo, bem como a relação
de seu corpo com a realidade que a cerca. Ou seja, é ela a responsável pela
fundação da instância do "eu". A criança irá então participar
imaginariamente, da forma total de seu corpo e da sua constituição enquanto
"eu", "eu
ideal". A instância do eu é desta forma fundada em uma ordem imaginária
(Roza, 1995).
Segundo Freud a forma do "eu ideal" é uma imagem idealizada do eu sendo esta construída na sua quase totalidade pelos pais, que projetam no filho, fazendo ressurgir o narcisismo que eles próprios tiveram que abandonar por exigência da realidade. Portanto, inicialmente o “eu ideal” é o efeito do discurso apaixonado dos pais que abandona qualquer forma de consciência critica para produzir uma imagem idealizada do filho recém nascido.
Faz-se necessário ressaltar que essa primeira unidade de representações não é definitiva permanecendo para sempre idêntica a si mesma, uma vez constituída será continuamente renovada ou acrescentada de novos traços. Na verdade, o "estádio do espelho", representa o momento de uma primeira relação narcisista do sujeito consigo mesmo, que se revela irremediavelmente, e para sempre, marcada pelo outro. Um momento de constituição e alienação, portanto fundamental na constituição de um determinado tipo de desenvolvimento do "eu". Estádio que não é superado, mas remetido a uma configuração insuperável de identificações.
Conforme afirmei anteriormente, este processo de identificação narcisista (eu ideal), será o ponto de partida das séries identificatórias com as quais o “eu” será constituído, sendo sua função de "normalização libidinal. Momento que, a partir de então, caracterizar-se-á pelo esforço do sujeito em coincidir com a imagem que satisfaria primeiramente aos pais e depois aos outros (identificações secundárias).
É importante destacar que este primeira imagem apreendida pela criança é uma imagem repleta de desejo constituída pelo desejo do Outro. Face à imagem do outro a criança se identifica e se reconhece. Tal afirmação possibilita-nos afirmar que o desejo, antes do aparecimento da linguagem, só existe no plano de uma relação especular, dual, alienado no outro. Isto é, ele só é visto no outro.
De modo que
a partir deste momento inaugural em que a criança assume narcisicamente uma
determinada imagem para si mesma, essa mesma imagem revela-se enquanto suporte
de identificação primária constituindo o
ponto inaugural de sua alienação, da alienação de seu desejo.
Neste ponto é importante observar o
papel dos pais, e de seus desejos, neste primeiro momento
identificatório, na medida em que é
seu desejo que é apreendido pela criança enquanto seu.
De fato, a revivescência do
narcisismo dos pais em relação a
seus filhos refletir-se-á na imagem no espelho. A imagem captada pela criança
— construída pelos pais que
projetam no filho seus sonhos, seus desejos e suas perdas — é marcada
pela falta e pelo desejo.
Lacan
denomina esse tipo de relação dual estabelecida no estádio do espelho como
imaginária. Na busca de "si" o sujeito encontra apenas a imagem do outro com a qual se identifica e
na qual se aliena. É o outro que está de posse de sua imagem e de seu desejo,
já que percebe seu próprio corpo
na imagem do outro, identificação constitutiva e alienante. Processo que
apresenta como conseqüência
imediata a necessidade de destruir o outro, fonte de sua alienação. Motivo pelo qual Lacan assinala que narcisismo e agressividade são
correlativos e contemporâneos (1986, 1998a, 1998b). Cito Lacan (1986, [05/05/54], p. 197-198):
Antes
que o desejo aprenda a se reconhecer pelo símbolo, ele só é visto no outro.
Na origem, antes da linguagem, o desejo só existe no plano da relação imaginária
do estado especular, projetado, alienado no outro. A tensão que ele provoca é
então desprovida de saída. Quer dizer,
não tem saída [...] se não a
destruição do outro. O desejo do sujeito só pode, nessa relação, se
confirmar através de uma concorrência , de uma rivalidade absoluta com o
outro, quanto ao objeto para o qual tende. E cada vez que nos aproximamos, num
sujeito, dessa alienação primordial, se engendra a mais radical agressividade
— o desejo do desaparecimento do outro enquanto suporte do desejo do sujeito.
Segundo Freud (1915), a superação dessa relação mortífera e o conseqüente desenvolvimento do “eu” só ocorre, por um deslocamento da libido para um “ideal do eu” imposto de fora. A regulação das relações entre o "eu" e o “eu ideal” (imaginário) só se faz de fora pelo "ideal do eu"(simbólico). Vale assinalar que o "ideal do eu" — efeito do Édipo — é constituído por exigências externas ao indivíduo, particularmente por imperativos éticos transmitidos pelos pais, exigências estas às quais o sujeito terá como norma satisfazer. Veiculadas pela linguagem, elas operam a mediação entre o “eu” e o outro, necessária para que seja superada a relação dual imaginária. Dessa forma, com a entrada no Édipo, o simbólico passa a prevalecer sobre o imaginário (efeitos de prestância, de agressão e de sedução), organizando-o. Essa é considerada a identificação narcísica secundária, identificação ao outro tomado como "ideal do eu" sempre mediada pelo simbólico, pela palavra.
Conforme se pode perceber, são os conceitos de "eu ideal" e de "ideal do eu", formulados por Freud e retrabalhados por Lacan, que nos possibilitam apreender a regulação do imaginário pelo simbólico. Formas que também são consideradas como efeitos do discurso do outro. Se o "eu ideal" representa o discurso idealizante, desenvolvido pela paixão do enunciante, de aceitação incondicional, isento de crítica; de outro lado, o "ideal do eu" pode ser considerado como um discurso judicativo, que coteja traços do sujeito com normas e leis que lhe são exteriores.
Enquanto o "eu ideal" é
dominantemente imaginário, marcado pela relação especular com o outro e,
portanto, pela idealização, o "ideal do eu" é situado do lugar do
simbólico e traz a marca da sublimação. É ainda ele que comanda o jogo das relações de que depende a relação
para com o outro. É a partir do
deslocamento do “eu ideal”para o “ideal do eu” que se
pode perceber
uma passagem do narcisismo primário para o secundário. Se nossa experiência
é fundamentalmente de ordem imaginária, é o simbólico que, ao recobri-la,
regula-a e confere-lhe sentido.
É a troca simbólica — lugar das exigências da lei, lugar da palavra — que liga os seres humanos entre si que permite, através da palavra, identificar o sujeito.. É nesse sentido que Lacan apresenta-nos a metáfora da inclinação do espelho como determinada pela voz do outro. Ou seja, mediante a voz do outro (outro este determinado pela palavra) a imagem se distorce, o sujeito estabelece outras tantas identificações e se constitui como sujeito desejante. [3] 32332157
Enfim,
a imagem reproduzida no
espelho não se revela assim tão simples pois a
imagem que vemos no espelho é sempre
construída a partir do olhar do
outro. Da mesma forma, o
que acreditamos ser
encontra-se na dependência do olhar e do discurso
do outro. Se me vejo bonito ou desejável é porque
tenho razões para acreditar que os outros gostam de mim ou me desejam.
Vejo, em suma, o que imagino que os outros
vejam.
Por isso o espelho é ao mesmo tempo tão
tentador e tão perigoso para o adolescente. Com certeza todo adolescente quando
se olha gostaria de descobrir o que os outros vêem nele. Assim diremos que a
adolescência vive “especialmente” o drama do espelho. A questão é que na
falta de um olhar de reconhecimento por
parte do Outro simbólico que diga o que deve ser, como deve se portar, que
caminhos seguir, é ao espelho —
Outro imaginário — que o adolescente se
dirige de forma absoluta estabelecendo-se aí um laço que o captura e
aprisiona.[4]
Mas se até aqui me remeti a um espelho
que dá unidade, para pensar o fenômeno
da adolescência remeto-me
a um “estranho espelho”,
em que a imagem refletida retorna
de forma distorcida e
deformada. Nesse sentido, imaginem o aconteceria se ao olharmos para o espelho,
este nos retornasse uma estranha imagem a partir
da qual ficassem visíveis as imperfeições
que não suportamos nos
deparar e que
procuramos esquecer ou
recalcar. Tal qual Doriam Gray (Wilde,
) diante do retrato que se
desfaz, face a esse “estranho espelho”,
soltaríamos um grito de horror.
Estranho espelho
Com efeito, se uma primeira relação especular mantida com o infans é marcada pela ilusão de uma imagem de totalidade, de completude (eu ideal) — é necessário para que sua constituição como sujeito se dê que tal relação sofra um deslocamento para o “ideal do eu”. Lembro que somente nessa relação de báscula entre ëu ideal”e “ideal do eu”, um sujeito desejante poderá comparecer e uma estrutura psíquica será constituída. Momento em que a oscilação do espelho acaba por produzir uma “imagem distorcida”, ou melhor, uma “estranha imagem”. Funcionamento que se encontrará sempre na dependência de uma configuração edipiana produzida a partir do interdito do Pai, representante simbólico da lei.
Cabe dizer que se esta primeira imagem
distorcida é vivenciada na infância e determinada pelos efeitos de uma
determinada configuração edipiana aí instaurada, ela retorna com a adolescência
visto ser esta um momento de revivescência do conflito edípico. Com efeito,
com a chegada da adolescência é possível
observar um duplo estranhamento, tanto dos pais em relação a imagem de seus
filhos, como dos filhos em relação a imagem de seus
pais. Dito de outro modo, pais
e filhos se olham e se estranham.
Há
um artigo de Freud “Das Unheimliche” (1919)
traduzido habitualmente por “o estranho” e “ sinistro” que nos
ajuda a pensar o duplo
estranhamento produzido entre pais
e filhos, como dos filhos em relação
a imagem de seus pais.
Neste artigo Freud destaca a ambigüidade da palavra que oscila entre o
familiar e o desconhecido e a relaciona com
a sensação de inquietude do sujeito face ao retorno do material recalcado
(portanto conhecido), o qual retorna sob a forma de algo desconhecido e
assustador. Ou seja, algo que
retorna de fora , mas que no entanto lhe é extremamente intimo.
No Dicionário comentado do alemão de
Freud, Hans observa,
(1996, p.238): “A sensação de estar perante algo ‘estranho’
torna-se ainda mais amedrontadora para o sujeito quando se borram as fronteiras
entre o real e o imaginário” Assim sendo pensar em um “estranho espelho”
implica pensar em um para além da imagem, uma espécie de imagem
distorcida que traz consigo o retorno do recalcado.
Assim,
se por um lado, os pais
estranham seus filhos adolescentes, ou melhor,
já não reconhecem nestes — como acontecia quando era criança — a
possibilidade de ser o fruto de
seus melhores esforços; por outro lado, também
o adolescente estranha
seus pais — que até então eram considerados predominantemente como
heróis — estabelecendo
relações ambíguas marcadas pela dificuldade
em reconhecer o que tem de
sobredeterminação paterna.
Como é possível perceber, a adolescência — diferentemente da infância — pode ser considerada como um período oriundo da vivência dessa estranheza frente ao espelho. E isso vale tanto para os adolescestes como para seus próprios pais. Dito de outra maneira, a perda da imagem idealizada da criança como possibilidade de realização dos ideais de sucesso e felicidade é o alicerce imaginário sobre o qual se sustenta o estranhamento dos pais. Sendo assim, longe de ser patalógico, o estranhamento é intrínseco ao papel que os pais devem sustentar na adolescência de seus filhos. Além do mais, são os efeitos aí produzidos que possibilitam a um só tempo, uma necessária separação dos corpos e o comparecimento de um sujeito desejante. Nesse sentido, a adolescência — momento de validação ou invalidação da primeira operação de inscrição (ou não) do operador estrutural “Nome-do-Pai” produzida no Édipo — diz da possibilidade do sujeito adolescente sustentar-se como sujeito de desejo.
Além do mais é bom lembrar
que a dificuldade dos pais em darem conta do estranhamento causado pela
adolescência do filho remete-o sem dúvida
alguma aos efeitos de sua própria
castração.
[...]
os pais se espelham ma nova imagem do filho crescido, mas o que vêem
nesse corpos viçosos não são eles: era eles, não são mais. Atrapalhados com
o reencontro em seu filho do corpo da juventude, com as manifestações da paixão,
com a lembrança daquele beijo
interminável do primeiro amor, tão mais maravilhoso quanto mais pretérito, os
pais suportam mal a diferença que se explicita entre o jovem e o adulto. O
espelho [...] revela aos pais suas verdadeiras faces. Subitamente envelhecido,
adulto grita seu descontentamento com o novo estado. O estranhamento com o filho
é também o estranhamento com a própria imagem.(Corso, p.19)
O fato é que dependendo da maneira como o estranhamento é vivido por pais e filhos ele abre as portas para a agressividade, que fora dos limites, aponta para a agressão. Em um outro trabalho ressaltei a presença de uma relação especular em situações de violência familiar: capturados por um discurso produtor de "imagens idealizadas" constituídas no registro do imaginário(eu ideal), os pais ficariam impossibilitados de lidarem pela via do simbólico (Palavra /Lei) com uma situação na qual o filho comparece como um outro qualquer e não mais enquanto imagem de seu desejo (Roure, 1996). Situação que distorce a imagem e altera a percepção do filho, que aí se apresenta sob a forma de um “estranho”. Melhor dizendo: diante de uma não submissão dos filhos, alterada a imagem, rompida a relação especular, o pai que não se submete a uma relação constituída pela via do simbólico na qual deveria comparecer enquanto portador e regulador da lei do desejo, parece fazer do filho, antes objeto de desejo, objeto de gozo. Preso narcisicamente a uma imagem idealizada de um eterno primeiro amor (“eu ideal”), o pai parece buscar no filho, desde sempre, o seu retorno.
Segundo Becker(1997), quando o discurso social no qual os pais tem a necessidade de enganchar seus filhos, fica substituído por uma captação/satisfação narcísica (determinada pelo “eu ideal”) o sujeito está condenado a um não-desejo. Nesse caso, teríamos aí um assujeito, puro objeto de gozo do Outro. “E esta é a justa denúncia feita pelo adolescente, pois é justamente, deste lugar de objeto de gozo do Outro que ele quer se defender. Denúncia no sentido de ser um produto do mundo moderno, quando os ideais narcísicos estão cada vez mais presentes” (Becker, 1997, p. 109) .
Mas a questão complexifica-se na medida em que, se o estranhamento é aqui considerado como efeito da castração de ambos, produtor de uma separação de corpos entre pais e filhos, este pode vir a não se dar. E caso este corte não se estabeleça e o adolescente não se depreenda de uma relação especular, um sujeito desejante aí não comparecerá. Alienado ao desejo do Outro, o sujeito se oferece como objeto de gozo. Neste momento lembro-me de Tyrone, um dos personagens envolvidos com o consumo e o tráfico de drogas no filme “Réquiem para um sonho” (Darren Aronofsky, 2000) que ao se olhar para o espelho, não se enxerga, mas contempla assustado a imagem persecutória de sua mãe.
Ideal adolescente
De forma metafórica é possível afirmar
que a adolescência chega quando o adolescente olha no espelho e reconhece
—com estranheza — que algo mudou, ele se acha “diferente”. Perde a graça infantil e reconhece um corpo
“estranhamente” próprio. De fato, o
adolescente não é mais a possibilidade que o sonho do pai se realize e apenas
um olhar de reconhecimento do adulto poderia lhe fornecer um lugar.
Mas o olhar falha e ele não ganha nenhum outro tipo de reconhecimento, a
não ser um: “Espere ainda um pouco mais.”
Neste momento, sem rituais que
simbolicamente possam introduzi-lo no
mundo adulto, submetido a uma moratória que o faz recolher/recalcar
seu desejo, o adolescente passa
a interpretar o desejo inconsciente (escondido, esquecido, recalcado)
dos adultos. Afinal, quem
sabe tal interpretação permita-lhe descobrir o ideal do adulto, para então
produzir ritos próprios — determinados pelo próprio grupo — que os possibilitem serem
reconhecidos como adulto.
Assim sendo, o adolescente se lança numa interrogação continua
quanto ao atributo que deveria possuir para introduzir
— “a si próprio” — no
mundo adulto.
Entretanto, tal interpretação acaba por produzir efeitos surpreendentes
visto que traz consigo a revelação dos desejos proibidos dos adultos.
‘Em
geral, o adolescente é ótimo interprete do desejo dos adultos. Mas o próprio
sucesso de suas interpretações produz fatalmente o desencontro entre adultos e
adolescentes. Pois se estabelece um fantástico quipróquo: o adolescente acaba
eventualmente atuando, realizando um ideal que esmo algum desejo reprimido do
adulto. Mas acontece que esse desejo não era reprimido pelo adulto por acaso.
Se reprimiu, foi porque queria esquece-lo. Por conseqüência, o adulto só pode
negar a paternidade desse desejo e se aproveitar da situação para reprimi-lo
ainda mais no adolescente. (Calligaris, 2000, p.27)
Não tenho dúvida do quanto essa interpretação do desejo dos adultos pelo adolescente é facilitada pela produção imaginária determinada por uma cultura de massa, que oferece “prontamente” uma espécie de repertório social de sonhos e de ideais. Sabemos muito bem o quanto a constituição do sujeito contemporâneo, encontra-se determinada muito mais pela via das identificações imaginárias (eu ideal) materializadas pelo fluxo contínuo de imagens propostas por um repertório midiático, que por identificações referendadas por instâncias simbólicas (ideal do eu): família, escola, igreja, justiça e direito.
É neste contexto que ao nos deparamos
com uma estética
adolescente — “Todos querem ser
adolescentes” — é possível pensar
na existência de um ideal cultural
a partir do qual os adultos passam a se identificar.
Neste contexto, as famílias contemporâneas tendem a
viver um tempo único. Ou seja, todos
querem ser adolescentes, todos fazem parte
de uma mesma geração. Mas se pais e filhos gostam das mesmas músicas, freqüentam
os mesmos lugares, vestem-se com as mesmas roupas
como situar uma diferença?
O fato é que misturados aos filhos e capturados pelo “ideal
adolescente”3,
torna-se cada vez mais difícil aos pais
responder a estes a pergunta
demandada: O que devo fazer para ser reconhecido como um adulto? Mesmo porque
talvez tal resposta não tenha sido oferecida pelos pais de seus pais. Daí
encontrarem-se ainda aprisionados ao desejo
de serem “eternos” adolescentes.
Enfim, imaginem só
o fato de que ao interpretar o desejo dos adultos e procurar descobrir qual
seria o sonho deles os adolescentes deparam-se
com sua própria imagem. “O ideal escondido dos adultos eram [são]
eles mesmos, os adolescentes.( Calligaris, p. 72)
Nessa direção, não tenho dúvida
do quanto o último filme de Larry Clark ( diretor de KIDS) e Ed Lachman, KEM
PARK (2002) ,
retrata essa louca tentativa de interpretação
dos desejos adultos por parte daquele grupo de adolescentes. O enredo conta a vida de um
grupo de amigos californianos que tem duas coisas em comum: o skate e os
maus-tratos dentro de casa. Com efeito, seus atos corpo-rificam
não
apenas uma interpretação do desejo de seus pais, mas uma entrega desesperada
ao gozo do Outro pelas mais variadas formas[5].
Na falta de rituais simbólicos de passagem que possibilitem a aqueles
adolescentes uma inserção e
reconhecimento no mundo adulto, no filme, de forma geral,
o corpo parece-me ser tomado como lugar de
rituais “próprios” promotores de uma “ilusória”
inscrição neste
mundo adulto: “Eu também gozo.”[6]
E ali a produção
das cenas —
tomadas em closes — de
sexo explicito, abuso sexual, suicídio, homicídio e
sado-masoquismo, demarcam um
tempo em que o imperativo a gozar
conclama sua
visibilidade e publicização.[7]
O professor “estranho” e o “estranho” aluno
Mas se até aqui eu me remeti a um estranhamento entre filhos e pais, a partir de então remeto-me ainda que rapidamente a relação entre professor e aluno. Afinal, sabe-se muito bem que cabe ao mestre a função simbólica e sócio-cultural de sustentar e transmitir as novas gerações — infância e adolescência — a tradição simbólica que funda, de uma só vez, o sujeito e a cultura. Mas se assim o é, que tipo de efeitos podem ser produzidos no interior desta transmissão se tomamos como referência alguns dos dados apresentados pela pesquisa nacional Violência, aids e drogas nas escolas, realizada sob a coordenação da organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) em que 49% por cento dos profissionais do corpo técnico-pedagógico das redes estadual, municipal e particular de ensino ouvidos pela pesquisa afirmaram não gostar das aulas e 42% declararam o mesmo sobre a maioria dos alunos?
Se em relação aos pais, os adolescentes não mais se apresentam como imagens ideais, mas ao contrário, funcionam como retorno do impasse de sua própria neurose, os “ideais narcisicos”, as “fantasias de onipotência”, a “ilusão do gozo pleno” — todos impossíveis de serem alcançados — temo que em relação ao professor, esse funcionamento não se dê de forma diferente. O corpo jovem e viçoso — um dia desejado —, funcionando como “estranho espelho ” acaba por incomodar e a “rebeldia” — um dia almejada — é denegada. Nesse sentido, lembro-me de uma vez, em especial, quando em uma palestra sobre a adolescência, um senhora professora confessa o quanto lhe era insuportável deparar-se com as adolescentes cujas roupas colocavam seus corpos a vista. Daí uma ferrenha argumentação em favor do uniforme que en-cobre o corpo portador de “desejos proibidos”.
Da mesma forma, em relação ao aluno, o professor — antes “suposto saber”, agora submetido a um esvaziamento simbólico — destituído de seu saber e marcado pelo “não ter”, desloca-se para a posição do Outro grande ao “outro” semelhante[8]. Neste contexto, o “estranho espelho” desloca-se de casa para a escola. Funcionando como imagens distorcidas - professores e alunos - se vêem e se estranham.
Neste ponto retorno às identificações secundárias de natureza simbólica (determinadas pelo “ideal do eu”) a partir das quais um professor poderia contribuir com a formação de um ideal cuja função é reguladora e normatizante. Vale dizer que tal processo implica em se considerar a existência de uma relação que comporte uma dimensão transferencial como processo mediado pelo ato da palavra. Esse processo pressupõe em sua dinâmica a existência de uma suposição de saber a quem me endereço. Uma vez instalada a transferência, a figura do professor passa a ser carregada de uma importância especial, o que possibilita a ambos – professor e aluno - a existência de um investimento desejante de um para com o outro. Desse momento em diante, o que quer que o professor diga será escutado e significado a partir da posição que este ocupa no inconsciente do aluno (Roure, 2002).
Ora, assim como observei em relação ao
estranhamento presente entre pais e filhos, também o estranhamento produzido no
interior da relação professor e aluno pode
funcionar tanto como produtor de diferença, e portanto como
possibilidade de que um sujeito marcado pelo desejo de saber aí compareça,
como pode também produzir atos
que impliquem na destruição do outro. Afinal, diante do outro que não
o reconhece, e por isso mesmo, captura
e aliena, a escolha do
sujeito pode ser irredutível: “Sou eu ou o outro”.
E nessa direção que penso nos atos
de agressão realizados no
interior da escola — autoritarismo,
desrespeito, vandalismo,
alcoolismo, agressão, delinqüência,
drogadição etc — cometidos
tanto por alunos, quanto pelos próprios professores
Para finalizar,
retomo dois filmes para
colocar em questão os processos de identificação — imaginário ou simbólico
— possíveis de serem estabelecidos
entre professores e
alunos e os efeitos aí produzidos. O primeiro filme é o clássico “Ao
mestre com carinho” (James Clavell, 1966) que retrata
os problemas e medos dos adolescentes do anos 60. Um jovem professor (um
engenheiro desempregado) resolve
dar aulas em Londres, no bairro operário de East End. A classe, liderada por
Denham, Pamela e Barbara, estão
determinados a destruir Thackeray como fizeram com o ultimo professor.
Funcionando como o grande Outro Thackeray
estabelece uma relação transferencial a partir da qual a rebeldia do
grupo transforma-se em “desejo de saber”, inscrito no campo do conhecimento
e da tradição cultural. Com
efeito, a identificação estabelecida com o mestre produz a possibilidade de
ingressarem no mundo adulto mediado
pelos significantes cultura e trabalho.
Já em uma outra direção, gostaria de citar um outro filme que também tematiza a relação de um professor com seus alunos: “187 – O Código” (Kevin Reynolds, 1997). Situado na década de 90 este filme dá materialidade ao processo esvaziamento simbólico ao qual instituição escola tem sido submetida (Roure, 2003). O processo de identificação de natureza imaginária estabelecido com um dos alunos, leva ambos — professor e aluno — a morte. O filme inicia quando Trevor Garfield é esfaqueado por um aluno que havia reprovado sendo que logo após o acidente ele volta a lecionar numa escola pública de Los Angeles destinada as minorias.
Mas aqui as condições são outras, além de ser desautorizado pelos administradores da escola, que consideram os alunos como “clientes”, o professor também não consegue fazer-se reconhecido pelos alunos. Não é pouco lembrar que após o roubo de seu relógio — constituído pelo discurso tecnocientífico — o professor passa a usar em suas aulas câmeras de vídeo para o monitoramento de seus alunos 6. O fato é que sem conseguir estabelecer uma relação simbólica — mediada pela palavra — com a maioria dos alunos, Trevor, diante dos atos de marginalidade de seus alunos, opta por fazer justiça com as próprias mãos: mata um dos alunos, e decepa o dedo de outro. Já no final do filme, em um típico acerto de contas, assim como os personagens do filme Platoom (Oliver Stone, 1986), professor e aluno, fazem da “roleta russa”, um símbolo de coragem. Identificado ao professor, já caído sem vida sobre a mesa, o aluno toma para si o poder imaginário do revolver, repete a roleta e caí ... tal como o mestre. ....
Se no primeiro filme uma identificação simbólica estabelecida com o professor, aí ocupando o lugar de “sujeito suposto saber”, permite aos alunos uma inscrição simbólica e um conseqüente ingresso ao mundo dos adultos, já no segundo, a identificação de natureza especular entre professor e aluno — não mediada pela palavra — determina suas mortes. Funcionando como duplo do outro, aluno e professor – não se estranham – confrontados com o impasse “ou eu ou o outro”, atiram sobre o espelho ... que não se revelou estranho ...
Referências bibliográficas
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o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva,
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BECKER, Ângela Lângaro. Aborrescência, de Quem In: Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Adolescência entre o passado e o futuro. Porto Alegre: Artes e Ofício Ed. 1997.
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DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
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Luiz. Dicionário comentado do alemão de Freud.Rio de Janeiro:
Imago Ed., 1996.
WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.
___. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1998a.
___. A agressividade em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1998b.
ROZA, Luiz Alfredo Garcia.
Narcisismo. In: Artigos de metapsicologia, 1914-1917. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar,1995.
ROURE, Glacy Q. de Em nome do amor. In: Trata-se uma criança: congresso Internacional de Psicanálise e suas Conexões. Rio de Janeiro: Companhia de Freud,1999.
___.
E a ciência seduziu o mestre e ... amordaçou a palavra. In:
Educativa. Revista do departamento de Educação da Universidade
Católica de Goiás, Goiânia, v. p.
, . 2002.
___. Indisciplina: da palavra ao ato. In: SOUSA, Sônia M. Gomes. Infância e adolescência: múltiplos olhares. Goiânia: Ed. da UCG, 2002.
TUBERT, Silvia. O enigma da adolescência: enunciação e crise narcísica. In: O adolescente e a modernidade/ Congresso Internacional de Psicanálise e suas conexões. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.
[1]
- O termo identificação é compreendido
neste trabalho enquanto marca
simbólica a partir da qual cada sujeito adquire, não sua unidade, mas sua
singularidade. Nesta perspectiva, todos
os movimentos identificatórios
do sujeito, são, por assim dizer, ações subjetivas inconscientes, e não
atribuições conferidas, transmitidas
por alguma instância externa.
É importante destacar que as identificações secundárias podem ser
consideradas como efeitos de uma resolução edipiana
e cujas funções implicam numa normalização libidinal.
[2] Reafirmando a compreensão de Freud de que o eu é feito de uma sucessão de identificações com os objetos amados, Lacan observa: “O eu é um objeto feito como uma cebola, poder-se-ia descasca-lo, e se encontrariam as identificações sucessivas que o constituíram. “. ([05/05/54], 1986, p. 199)
[3] - E neste momento, o desejo deixa de se constituir como “Qual é o meu desejo? Qual é a minha posição na estruturação imaginária? Esta posição não é concebível a não ser que um guia se encontre para além do imaginário, ao nível do plano simbólico, da troca legal que só pode se encarnar pela troca verbal entre os seres humanos. Esse guia que comanda o sujeito é o ideal do eu.” (Lacan, [31/03/54] 1986, p.166)
[4] - É bom ressaltar que em uma cultura narcísica como a nossa a metáfora do espelho pode ser remetida a toda a rede imaginária da qual a televisão é o principal veiculo.
[5] Cito Larry Clark: "É um filme sobre como tentamos sobreviver à família. Os adultos estão usando esses garotos do jeito mais inapropriado, tentando satisfazer seus próprios vazios emocionais através de seus filhos. Alguns jovens de "Ken Park" não sobrevivem a isso."
[6] Concordo com a afirmação de Tubert( 1999) no texto “O enigma da adolescência: enunciação e crise narcísica” (1999), de que é possível observar atualmente em nossa sociedade a existência de formas equivalentes de ritos de iniciação, geradas pela estrutura grupal adolescente. Contudo, segundo ela: “Em um mundo em que a hostilidade e a irracionalidade parecem cada vez mais descontroladas — a tolerância e o reconhecimento e respeito às diferenças, a alteridade, são bem resumidamente escassos — não irá nos surpreender que os ritos de passagem elaborados pelos grupos de adolescentes e jovens centrem-se no exercício da violência.” (1999, p.65)
[7]
O suicídio de Ken Park, logo no inicio do filme ocorre em uma praça de
esporte, sendo registrado por
ele próprio em uma pequena máquina de filmar. Fazendo de seu corpo imagem,
e imagem para o outro assistir,
ele “eterniza” um gozo mortífero.
[8] Quanto a este processo de esvaziamento, ver o artigo: Indisciplina: da palavra ao ato.
6
Ver o artigo “e a ciência seduziu e mestre e ... amordaçou a palavra”.