OUTRAS LINGUAGENS: O ESTÁGIO SUPERVISIONADO COMO PRÁTICA DE ENSINO E  PESQUISA NO CEPAEi

 

Elisandra FILETTI*

Maria de Fátima CRUVINEL**

I. Introdução

 

O Estágio Curricular Supervisionado (ECS) constitui uma instância de legitimação das licenciaturas. Considerando esse fato, o CEPAE-UFG configura-se como um campo de prática e pesquisa docente que se instaura dentro da Universidade Federal de Goiás como um ambiente destinado ao exercício da prática pedagógica dOS vários estagiários oriundos dos diversos cursos de licenciatura da UFG.  Dessa forma, ali se desenvolvem os projetos de pesquisa e ensino daqueles que, futuramente, exercerão o magistério nos níveis fundamental e médio.

            No entanto, o estágio ainda mantém problemas oriundos da antiga relação estabelecida entre prática e teoria. Surge então uma necessidade premente de se articular todas as competências e habilidades desenvolvidas pelos estagiários ao longo de seu curso de graduação, o exercício da atividade pedagógica descrita pelo estágio, bem como de sua integração com o mundo do trabalho.

Nesse sentido, a escola deve se preocupar em inserir profissionais críticos e aptos ao desenvolvimento de seus projetos no âmbito do trabalho. Dentre os inúmeros problemas encontrados pelo ECS podemos destacar: a) a parcelarização das atividades; b) precárias condições de orientação; c) dificuldade em encontrar campos de estágio; d) dificuldade por parte de professores dos campos de estágio em aceitarem a interferência de estagiários em sua sala de aula.

            Ao considerarmos a discussão que envolve o papel do estágio na UFG, verificamos a necessidade de efetivarmos uma Política de Formação de Professores (FREIRE, 1993), assim como da realização dos Estágios Curriculares Supervisionados para que possamos delinear o perfil de um estágio mais satisfatório e necessário às Licenciaturas da UFG, que têm o CEPAE como ponto de convergência dessas discussões. Nesse sentido, o objetivo primordial do CEPAE, como campo privilegiado da discussão pedagógica e da prática, é garantir uma relação efetiva entre a escola de ensino fundamental e média e a universidade, de maneira que cada um esteja consciente de seu papel social.

            O Estágio Supervisionado é atualmente a expressão da diversidade: em relação às concepções e modelos que foram construindo-se historicamente, e que foram sendo alterados devido às necessidades da prática e ensino de língua, mas sobretudo, da defesa de uma concepção de língua e sociedade. O diálogo entre a concepção de ensino defendida no CEPAE encontra algumas dicotomias no âmbito da UFG, de forma que ainda consideramos a necessidade de se definir o perfil do profissional desta instituição e, para isso, é necessário que seja possível partilhar de idéias comuns a respeito da formação de professores.

            De 1998 a 2001, foi realizado um estudo por parte da Coordenação de Ensino, Pesquisa e Extensão, coordenado pela professora Sonia Santana da Costa junto aos coordenadores de curso, de subáreas e aos professores de Didática e Prática de Ensino da UFG, propiciou a reestruturação do estágio supervisionado em sua forma anterior. Este processo continua em desenvolvimento, e tem procurado nortear o contato entre professores e estagiários. Um dos avanços detectados a partir dessas primeiras ações deve-se à concepção de que o estágio é um processo de pesquisa engajada, sendo a prática pedagógica o objeto de estudo de professores e estagiários; o que contribui para a compreensão de que teoria e prática caminham juntas.

            Compreendemos o Cepae como um mediador entre universidade e sociedade, além de  constituir o campo necessário para a regulamentação do exercício do magistério. Seguindo esses princípios, buscamos dar melhores condições aos estagiários que ali se encontram, possibilitando-lhes o contato com perspectivas teórico-pedagógicas diferenciadas, que consideram o papel do sujeito como articulador do conhecimento. Esses princípios serão melhor discutidos nas seções que se seguem.

 

II. O trabalho com a língua portuguesa no CEPAE-UFG

 

A prática pedagógica dos professores do Cepae, bem como de nossos estagiários, referenciam-se na visão do teórico russo Mikhail Bakhtin (1981, 1995), segundo a qual a vida é dialógica por natureza. Isto é, viver significa participar de um diálogo que pressupõe: interrogar; escutar; responder; concordar, discordar etc. Semelhantemente à vida, a educação também só se realiza se orquestrada pelo diálogo; um diálogo, portanto, em que a palavra deve ser concebida, se não em sua múltipla orientação, pelo menos em sua dupla face. Como ciência humana que é, pressupõe sempre a recepção seguida de interpretação da palavra de outrem. Assim, a comunicação deve ser constitutiva dos pares ensino-aprendizagem, professor-aluno, aluno-aluno em sua relação com o conhecimento.

Na verdade, não são propriamente as respostas que nos seduzem, mas as perguntas que elas podem suscitar; elas é que nos movimentam, porque a cada resposta segue-se uma nova pergunta. Ao discurso do professor cabe, pois, responder a algo, mas sobretudo perguntar e com isso provocar outros discursos, garantindo no ambiente escolar uma postura contrária ao represamento da corrente do pensamento, cuja natureza é fluida e inacabada, e não imune à estagnação. Trata-se de compreender a educação como um diálogo infinito, como uma interlocução que nunca chega a termo. O diálogo é, aliás, considerado pelos teóricos da educação como uma prática privilegiada da investigação e ensino, como a forma do logos pedagógico, entendido como um “jogo constante de diferenças e interferências que, justamente porque diferem entre si, são capazes também de se interferirem e desestabilizarem mutuamente” (LARROSA, 2000, p.120; MORELLO, 2003:22).

 A perspectiva acima é trabalhada com os estagiários ao enfatizar que a interlocução na escola não é somente uma estratégia, mas um princípio. Naturalmente devemos pressupor um processo de recepção ativa da enunciação do professor, de forma que seja concedido um papel significativo ao aluno. Trata-se de compreender, com Bakhtin (1995), que “Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores”; que “A palavra vai à palavra. É no quadro interior que se efetua a apreensão da enunciação de outrem, sua compreensão e sua apreciação, isto é, a orientação ativa do falante”. E a partir disso esperar a réplica interior, o comentário efetivo. Logo, trata-se de conceber a interação verbal como exigência para o fim último da linguagem: a construção de sentidos.

Essa postura pressupõe um redimensionamento na forma de olhar o outro; pressupõe conceber a imagem do aluno, por exemplo, como a imagem que nos olha ¾ a nós professores ¾ e nos interpela. A inversão da direção do modo de olhar nossos alunos pode contribuir para uma prática pedagógica pautada pelo diálogo, na medida em que inaugura uma via de mão dupla na relação professor-aluno. E é nesse trânsito que acontece a aventura da aprendizagem, sustentada pela memória e elaboração do pensamento.

No caso específico da linguagem, a provocação dialógica é constitutiva. A língua não é linear como supunha a lingüística estrutural; não se configura apenas como uma seqüência de significantes à qual corresponde uma cadeia de significados. A língua é heterogênea; um campo em que se misturam, em natural conflito, discursos de origens diferentes, de forma que o sujeito falante se coloca na cena enunciativa sempre em relação ao outro, fazendo circular discursos de vários locutores. Como conseqüência, não se pode pensar em discursos individuais, mas em interdiscursos.

Assim, o ensino de língua no Cepae, desenvolvido por professores efetivos, assim como em relação à orientação de estagiários, reflete sobre o falar ou escrever, tomando sempre o discurso como o local em que a capacidade de enunciar dos sujeitos apresenta-se por meio de outros discursos anteriores que são por absorvidos pelos sujeitos da comunicação. De igual modo, ao acercar-me de um texto para sua audição ou leitura, o que posso fazer é escutar-lhe as palavras e ouvir sua linguagem, isto é, ouvir os sentidos presentes nos interdiscursos que a perpassam na forma de memória e história:

“Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc.” (BAKHTIN, 1995, p.95).

 

Naturalmente carregadas de um conteúdo ou sentido ideológicos, as palavras são sempre acentuadas, refletem e refratam o mundo que verbalizam.

Compreender a prática de ensino de língua materna  consiste, portanto, em aproximar o signo apreendido de outros signos já conhecidos, ou seja, é responder a palavras por meio de palavras. E somente quando uma enunciação encontra outra, somente quando se dá a interação verbal, é que há vida na palavra. Logo, entender o homem como ser de linguagem, portanto impensável como ser alheio aos signos que o cercam, é princípio constitutivo da educação.

Contudo, afirmar a natureza sígnica das formas de representação do mundo e, por conseguinte, a importância da linguagem no processo de construção do conhecimento, é insuficiente se não se concebe a natureza social e ideológica do signo; seria mesmo apagar o inquestionável vínculo entre a linguagem e a vida. “Qualquer que seja o aspecto da expressão-enunciação considerado, ele será determinado pelas condições reais da enunciação em questão, isto é, antes de tudo ‘pela situação social mais imediata’” (BAKHTIN, 1995, p.112).

Ao partirmos da idéia de que a linguagem é um produto da interação/tensão entre os interlocutores, o professor deve acreditar que é no movimento dialógico da interação verbal que os indivíduos podem constituir-se como sujeitos. Assim, postulando a linguagem como uma atividade em sua dimensão social, Bakhtin concebe-a como uma ação de falantes reais e concretos, socialmente organizados, ou seja, que enunciam de um lugar determinado. Conseqüentemente, signo e sujeito são considerados categorias inquestionavelmente ligadas à história, às ideologias, às formas de produção, circulação e recepção dos discursos.

Essa visão ampliada de linguagem, que podemos compreender como uma teoria do discurso, na medida em que contempla a língua como sistema formal mas também como uma manifestação social, cultural e histórica, advém da compreensão de que “a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal” (BAKHTIN, 1995, p.123). Esta é a realidade fundamental da língua.

 

II. Objetivos da prática pedagógica em sala de aula

 

Qual é a função, para a vida do aluno, daquilo que nos propomos a ensinar? De que forma, os conceitos apreendidos ao longo de uma formação podem contribuir para a prática em sala de aula? Essas são alguns dos questionamentos que têm permeado o trabalho de orientação dos estagiários oriundos da licenciatura em Letras, da Faculdade de Letras – UFG. Ao considerarmos que os objetivos são elementos fundamentais para o ensino de qualquer que seja o nível escolar ou a disciplina a ser ministrada, pressupomos que o papel do professor constitui uma atividade que se instaura além da perspectiva apenas pragmatista de educação, voltada exclusivamente para as aplicações práticas da aprendizagem. Não é possível deixarmos de nos indagar sobre o para quê ensinamos o que ensinamos. Toda e qualquer prática pedagógica em torno do ensino de língua portuguesa deve considerar: Para que ensiná-la, por que ainda ensinar literatura, artes, de uma forma geral?

Ao defendermos a formação de um profissional de qualidade, para que possa atuar nos campos do ensino de língua como um sujeito consciente de seu papel social, formador de novos cidadãos, pretendemos que o aluno seja capaz de compreender e usar a língua portuguesa em diferentes situações enunciativas, seja na forma oral ou escrita, seja para a leitura de enunciados verbais e não-verbais, percebendo sua constituição como expressão do homem e do mundo.

É importante salientar que a abordagem dada à linguagem, nos ensinos fundamentais, é a mesma nos respectivos cursos do ensino médio. Dessa maneira, consideramos que quanto antes o estagiário de Letras estiver inserido no processo que envolve a prática de língua portuguesa, mais condições de se colocar no mercado esse estagiário terá.

Ao abordar a língua como um organismo social, configurada como sistema e numa estrutura, mas que se constitui como acontecimento variável, passível de interferências,  o  texto surge como elemento norteador de nossa prática pedagógica. Mediante essa determinação, as atividades de análise lingüística, de produção textual bem como a prática de leitura de gêneros diversos e do gênero literário são focalizadas do prisma da linguagem em uso, como manifestação cujo fim é a construção de sentidos.

Dessa maneira, abordamos a língua portuguesa a partir da leitura e produção de textos, dos diversos gêneros discursivos e literários, observando fenômenos como a intertextualidade, a interdiscursividade (SILVA, 2001; CHIAPPINI, 2001; MAINGUENEAU, 2002).

Assim, a produção escrita do aluno será um dos materiais lingüísticos mais explorados nas atividades de análise da estrutura da língua. Servirão, portanto, como um referencial para o estudo gramatical, o que direciona o trabalho de fim de curso de muitos estagiários, além das pesquisas conduzidas pelo CEPAE.

 A produção textual e a leitura, em sala de aula, pressupõem as relações sócio-interacionais produzidas pelos sujeitos de linguagem. Nesse sentido, todo trabalho de língua será realizado numa perspectiva funcional da linguagem, ou seja, enfocará as funções dos elementos lingüísticos como constituidores da dos padrões de organização  de todo e qualquer discurso, fugindo de uma concepção mecanicista em que o professor é o único agente em sala de aula.

Nesse sentido, as atividades de leitura, produção escrita, apresentação de seminários e trabalhos  são conduzidos pelo professor orientador, pelos próprios estagiários, que participam efetivamente das atividades de planejamento de suas aulas, das avaliações formais e processuais a que os alunos são submetidos. Nesse sentido, em nenhum momento, temos nossas atividades interrompidas, do ponto de vista do conteúdo a ser ministrado, porque há, no trabalho do estagiário, uma concordância temática e pedagógica, quanto ao desenvolvimento dos projetos idealizados para o estágio. Sendo assim, o professor de língua materna é um formador de opinião e de sujeitos.

O trabalho desenvolvido pelos estagiários no Centro de Pesquisa e Ensino Aplicados à Educação – CEPAE – consiste em buscar na leitura de clássicos da literatura, dos diversos gêneros discursivos, a construção do aluno e, conseqüentemente do estagiário de Letras, de forma a conduzir sua postura frente às mais diversas situações do cotidiano: no trabalho, no estudo, na sua formação como indivíduo. Muitas são as vozes que orientam esse processo de constituição da Educação no Brasil, um tanto contraditórias às vezes, mas que provocam a vontade de ver configurada uma sociedade em que a ciência seja comum a todos os segmentos sociais e que possamos ao menos dialogar. Assim, poderemos evitar o que Hannah Arendt (1980) afirmou sobre a privação fundamental dos direitos humanos, principalmente de um lugar no mundo que torne significativas as opiniões e efetivas as ações do homem.

 

Referências Bibliográficas

 

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 7.ed. São Paulo: Hucitec, 1995.

_____________. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.

CHIAPPINI, L. Outras Linguagens na Escola. São Paulo: Cortez, 2001

DIONÍSIO, A. P., MACHADO, A. R.e BECERRA, M. A. Gêneros Textuais e Ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

FREIRE, P. Política e Educação. 3 ed. São Paulo: Cortez, 1993.

SILVA, Y. J. Meios de comunicação e educação – o rádio, um poderoso aliado. In: CITELLI, A. Outras linguagens na Escola. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2003.

MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2002.

MORELLO, R. Do cultural ao civilizado: quando o conhecimento nos transporta. IN: GUIMARÃES, E. Produção e circulação do conhecimento. Campinas: Pontes, 2003.

ARENDT, H. Los orígenes del totalitarismo. Madrid: Taurus, 1974, p. 565. IN: Telles, V. da S. Direitos Sociais. Afinal do que se trata. Belo Horizonte: Ed. UFMG,1999.



i Este trabalho é fruto das discussões e das práticas desenvolvidas por todo o grupo de língua portuguesa que atua no Centro de Pesquisa e Ensino Aplicado à Educação – da Universidade Federal de Goiás.

* Professora Assistente em língua portuguesa no CEPAE-UFG. Mestre em Lingüística (UFMG).

** Professora Adjunto em língua portuguesa no CEPAE-UFG. Doutora em Literatura Brasileira (UNESP-Araraquara).

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