1º ENCONTRO DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO

30 DE NOVEMBRO – 2 DE DEZEMBRO DE 2003

O LIVRO DIDÁTICO. ONTEM E HOJE[1]

                                                                       Profª Zaíra da Cunha Melo Varizo[2]

O livro didático vem sendo de longa data objeto de minha atenção. Em 1982, escrevi o artigo “O livro didático – Escolha e Uso”[3] apesar de não ter escrito nenhum outro trabalho sobre o tema, sempre estive em contato com a questão do livro didático de matemática, ora orientando monografias, ora nas atividades desenvolvidas na disciplina de Didática e Prática de Ensino de Matemática ou em estudos desenvolvidos a partir de indagações pessoais sobre sua escolha, seu uso, seu papel no processo de ensino-aprendizagem e sua relação com a prática de ensino do professor. O convite de participar da mesa redonda sobre o livro didático da matemática na III Jornada de Educação Matemática do Campus Avançado da Universidade Federal de Goiás de Jataí, em setembro deste ano, motivou a elaboração de um texto a partir do qual este trabalho foi desenvolvido.

O livro didático é hoje o principal, se não o único instrumento do professor de matemática. É ele que determina, em última instância, os conteúdos e a forma de abordá-los. Molda o ensino e a aprendizagem da matemática. Entender como chegou aos nossos dias, como se deu sua construção ao longo do tempo é um imperativo para compreensão da educação matemática e da prática do professor de matemática nas nossas salas de aula.

Sabemos que o livro didático se insere em um contexto bastante complexo, que envolve o sistema educacional, a sociedade brasileira, o Estado, o mercado e a indústria cultural. Sabemos também que é impossível tratarmos ao mesmo tempo de todos esses aspectos, especialmente considerando a natureza deste trabalho. Nos propomos abordar apenas alguns desses aspectos, nos voltamos para as questões práticas e para aspectos evolutivos de sua história.

O livro foi reconhecido como o instrumento do intelectual, do professor, no século XIII. Não se concebia mais que a ciência ficasse enclausurada entre poucos privilegiados, ao contrário precisava ser posta em circulação e as escolas seriam as responsáveis por esse papel de divulgar o conhecimento. Reconhecia-se a ligação entre ciência e ensino. Neste contexto o livro ganhava  importância. Não apenas os livros relacionados nos programas deveriam ser lidos pelos mestres e alunos. Surgia um novo tipo de livro que era elaborado a partir das notas que os estudantes tomavam durante as aulas, que deviam ser publicados rapidamente para que os alunos pudessem consultar antes dos exames.

Esses livros, denominados de exemplar, eram elaborados pelos copistas a partir das notas dos alunos. Após serem corrigidos, sob o controle da universidade, passavam a ser considerados texto oficial do curso. A publicação do texto oficial do curso foi tornando-se de importância capital, a ponto da Universidade de Pádua declarar que “Sem exemplares, não haveria universidade”( Goff, p. 73,  1989).

Inicialmente esses exemplares eram produzidos pelos copistas. A primeira versão era feita numa pele de carneiro que posteriormente eram transcritos para o pergaminho. A intensificação do uso do livro, devido ao fato do ensino ter ficado cada vez mais dependente do livro e a necessidade de transportá-lo de um lado para outro, transforma o formato do livro, tornando-o menor e as folhas de pergaminho mais finas e flexíveis. “Uma primeira revolução acontece: o livro não é mais um objeto de luxo, mas se torna um instrumento. É um nascimento mais do que um renascimento, esperando a imprensa”. ( Goff, p 74, 1989)

Além do ensino ficar dependente do livro e da mudança no formato dos livros surge a figura do mestre, que não precisava ser um expert no saber contido nos livros,   tinham o papel de ler o livro em voz alta para os alunos que deviam ouvir as informações  e memorizá-las. Cabia ainda à ele, o mestre, a responsabilidade de verificar nos exames se os alunos as tinham decorado.

A pressa em se ter o texto e a necessidade de baixar os custos dos livros fizeram que os copistas deixassem de se preocuparem com a estética, buscando letras mais fáceis, abreviaturas, e não fizessem mais as iluminuras, ou seja, as ornamentações, deixando os espaços em branco para que aqueles com melhores condições financeiras mandassem fazer, se assim o desejassem. Essas iluminuras ainda podem ser encontradas em alguns livros do século XIX, como na bíblia e livros de orações.

Embora com muitas controvérsias durante todo o século XIII, os estudos foram tornando-se pagos. Muitos estudantes que não podiam pagar seus estudos ou não tinham um protetor para pagá-lo, passaram a trabalhar como  copistas ou vendedores de livros. Juntaram-se aos copistas existentes ou aos vendedores de livros, nas livrarias que foram surgindo, formando um grande contigente de trabalhadores ao lado das universidades, como afirma Goff

     Desta forma o livro se torna um produto comercial e objeto comercial. À sombra da universidade desenvolve-se toda uma população de copistas. Engrossam os efetivos da corporação ampliando-a com todo um grupo de artesões auxiliares. A indústria intelectual tem suas indústrias anexas e derivadas. Alguns desse produtores e comerciantes já são grandes personagens. Ao lado dos artesões, cuja atividade se reduz à revenda de algumas obras de ocasião, outros se expandem até o papel de editores internacionais’( Goff, p 74, 1989)

Os programas das universidades eram constituído das sete artes, das quais faziam parte o trivium formado pela gramática, dialética e retórica, e o quadrivium, formado pela aritmética, música,  geometria e astronomia. Os livros didáticos eram classificados em pro formam legendi, livros de leitura formal, e libri extraordinarie legendi, livros para serem lidos nos feriados. Embora a matemática fizesse parte do quadrivium os livros de matemática estavam incluídos             entre aqueles que deveriam ser lidos nos feriados. Na linguagem atual diríamos que a matemática era uma disciplina optativa.

É no século XIV, que a matemática começa a ser aceita como matéria regular, assim mesmo, em nível bastante elementar, tendo por principal objetivo o cálculo das datas religiosas, como a Páscoa. O livro didático de matemática que atendia a esse requisito e usado por vários séculos foi o Sphaera de Sacrobosco, mestre inglês que viveu por volta de 1200 e 1256. O Sphaera com várias cópias espalhadas pela Europa, tratava da astronomia em nível bem elementar. O outro texto de Sacrobosco, que rivalizava em popularidade com o Sphaera, foi o Algaritimus que esteve presente nas universidades até o século XVI quando foi substituído pelo manual de Peuerbach, o qual era considerado superior ao de Socrobosco por apresentar regras, embora estas não fossem acompanhadas de demonstrações. No entanto ainda no século XVII  o Algaritimus era preferido pelos universitários.  O Sphaera como livro didático, esteve presente nas universidades até o final do século XVI, quando começa a ser substituído pelo Theoricae novae planetarum, também de Peuerbach,  texto bastante elementar, apresentava as teorias dos planetas de forma simplificada e sem demonstrações.

A primeira vez que a matemática aparece como matéria regular foi na segunda metade do século XIV, na universidade de Oxford, seguida pela de Cracóvia, que na segunda metade do século XV cria, ao lado da cátedra de astronomia, uma de matemática. Assim Alberto de Budzewo, em 1476, ao lado do Sphaera de Sacrobosco, também ensinava as matemáticas puras: álgebra e geometria. A situação do ensino universitário da matemática começa a mudar ao longo do século XVI, mas assim mesmo muito lentamente. Durante a idade média no estatuto de muitas universidades também constava como livro didático o Livro I de Euclides, mas não se sabe se foi realmente lido.

A invenção da imprensa  por Gutenberg, em 1445, acelerou a reprodução de textos e facilitou sua disseminação, pois permitia a elaboração de textos em menor tempo,  com grande quantidade de copias, além de poderem ser  mais volumosos. Entretanto as universidades apresentaram certa resistência, pois a nova tecnologia, representava uma ameaça a oralidade, ou seja ao sistema de leitura em voz alta. O aluno deixava de ser meramente um ouvinte, agora ele poderia deixar seu papel passivo e empreender estudos por conta própria, pois ele podia ler o livro sozinho.

Algumas universidades renderam-se à nova tecnologia, o novo sistema de impressão e imprimiram suas próprias publicações, integrando a impressão a corporação universitária, o que começou a exigir mudanças na prática do ensino universitário.

Após o surgimento da imprensa segue-se uma profusão de impressão de livros didáticos de matemática. Os primeiros livros didáticos de matemática impressos tinham conteúdos relacionados com o comércio e os negócios. Isto porque a matemática era ensinada nas escolas técnicas, laicas, voltadas para questões de contabilidade e negócios, isto é, para a prática, ensinavam também a escrita e línguas estrangeiras. Enquanto as universidades, dominadas pela igreja, ligadas as verdades abstratas e eternas estavam voltadas para o ensino geral.

Tudo leva a crer que no ano de 1478 tenha sido impresso o primeiro livro didático de matemática, “Aritmetica di Treviso”. Era um livro italiano mercantil, escrito no vernáculo, isto é, na língua local, e tinha a intenção de tornar o conhecimento do cálculo acessível ao público em geral. Seu autor, anônimo, passa rapidamente sobre as operações de soma e subtração, detendo-se na multiplicação e divisão, apresenta diferentes técnicas para multiplicar e dividir. Seguiu-se a impressão de outros livros didáticos da matemática  com os mesmos  objetivos,  por quase todos os países da Europa. A aritmética era a forma mais desenvolvida e mais aceita neste período, pois atendia as necessidades das transações comerciais.

Essas escolas técnicas, voltadas para as necessidades dos cidadãos comuns, se proliferaram. Alguns autores e professores destas escolas,   tinham o intento de escrever o livro de modo  a torná-lo incompreensível, não revelando totalmente o seu conhecimento, para atrair os alunos para a sua própria escola. Além do que  a compreensão e a leitura dos livros já era dificultada por ainda não haver um acordo na terminologia da matemática, o que só veio acontecer após Descartes.

Juntamente com a grande quantidade de livros didáticos de aritmética veio a exigência de mudanças nos livros didáticos usados na universidade. No final do século XV, com o advento do humanismo, cultivava-se o estudo dos clássicos, sendo impresso os originais gregos e romanos que passaram a ser usados na universidade. Por isso tivemos a primeira edição impressa dos  Elementos de Euclides, em 1482, seguida de várias impressões em italiano,  inglês,  alemão e francês e posteriormente em outras línguas. Tornou-se o Bestseller do período do humanismo. Tendo sido adotado, em 1552, nos Colléges  jesuítas, no ensino da matemática.

O  protótipo do livro didático  moderno de matemática foi publicado em 1667 e depois em 1683, intitulado Novos elementos de geometria, escrito por Antoine Arnauld (renomado teologista e filósofo francês), apresentou uma nova organização da matemática, começando pelo desenvolvimento das operações fundamentais  seguida de seus aplicações à geometria e utilizou-se da inovação da notação algébrica de Descartes, tornando o livro mais fácil de ser lido e acessível a um número maior de indivíduos.

Com a revolução francesa (1789) foi estabelecido o primeiro sistema escolar voltado para uma educação geral e pública. Nesta ocasião D’ Alembert apresenta um estudo minucioso sobre como deveriam ser os livros didáticos de matemática. Seu texto continha reflexões  sobre a elementarização do conhecimento e sobre como escrever livros didáticos. Preconizava o uso da estrutura da disciplina para reconstruir o currículo escolar. O mesmo raciocínio da reforma escolar de 1960, ou seja, aproximar a relação  entre o conhecimento científico e o conhecimento escolar, preservando a estrutura da matemática.

O trabalho de D’Alembert influenciou a elaboração dos livros didáticos durante o período da revolução Francesa. De acordo com D’Alembert o desafio dos cientistas de ponta que pertenciam a comissão da República, era o de elaborar melhores métodos de ensino  e melhores livros didáticos. Preconizava que o aluno deveria ser mais ativo, que o professor deveria de exigir que o aluno desenvolve-se seu próprio raciocínio e trabalho, indo contra a concepção tradicional da oralidade,  a qual exigia que o aluno deveria ser um ouvinte passivo e deveria fazer uma transcrição correta das informações recebidas.

Fazia parte do pensamento dos ideólogos da revolução que a instrução fosse uniforme, ou seja, deveria ser a mesma em toda a República, e  para isso todas as escolas tinham de adotar o mesmo livro didático. Acreditavam que assim disseminavam as concepções do Iluminismo.

A reforma de Condorcet, em 1792, preconizava que os instrumentos básicos da reforma social reivindicada eram: os livros didáticos elementares e o treinamento dos professores. Além disso, recomendava que deveria ser feita a distinção entre livro didático para o professor e livro didático para os alunos. Após o fracasso de numerosos planos para a escola pública  para todos, foi criada a Comissão da Instrução Pública, pelo parlamento francês, tendo sido considerado o livro didático como a pedra angular da reforma, reafirmando a adoção de um único livro didático em toda  a República. Estabeleceram que  o livro didático nacional deveria ser escolhido através de concurso público, marcado para o dia 18 de Janeiro de 1794. A comissão da escolha do livro didático de matemática era composta por Lagrange, Monge e Vandermonde. O livro escolhido foi “Elementos da Aritmética para uso nas Escolas Primárias” escrito por Sarret a partir das anotações de Condorcet, que havia sido decapitado pelos seus correligionários.

Muitos foram os embates, entre os matemáticos da época, escritores de livros, membros da comissão ou do Conselho da Instrução Pública (1799) e o mercado do livro didático com relação, principalmente, ao nível do conteúdo veiculado e a sua organização. Após avanços e retrocessos com relação a instituição da escola pública e do livro didático, nos primeiros tempos da revolução Francesa, ficou consolidada a escola pública e o livro didático.

A história do livro didático no Brasil é pouco conhecida especialmente no que tange a matemática. Podemos dizer que o interesse por conhecer uma trajetória histórica, não só do livro didático como da própria matemática no Brasil, data apenas das duas últimas décadas. 

O ensino da matemática, no Brasil, era desenvolvido até 1928,  por disciplinas: aritmética, álgebra e geometria. Os alunos deveriam fazer exames distintos para cada uma dessas disciplinas. A partir de 1928 a congregação do Colégio Pedro II, considerando as recomendações da Comissão Internacional do Ensino de Matemática, propôs a unificação da disciplina com a denominação de matemática. O que foi institucionalizado por decreto lei de 1929, mas que só se deu de fato com a reforma da educação de Francisco Campos, em 1932.

“Por meio desta reforma ficará estabelecido o currículo seriado, a freqüência obrigatória, dois ciclos, um fundamental e outro complementar, e a exigência de habilitação neles para o ingresso no ensino superior”(Miorim, p 94, 1998).

A matemática teria três aulas por semana nas cinco séries do ensino fundamental,  três horas por semana no ensino complementar, para aqueles que pretendiam fazer os cursos de Medicina, Farmácia e Odontologia e quatro aulas semanais, para aqueles que pretendiam fazer os cursos de Engenharia ou Arquitetura.

O Brasil, a partir de 1930, segue o modelo francês de centralização. Defende a idéia do livro didático nacional embora não seja único. Em 1937, criou-se o Instituto Nacional do Livro (INL), que tinha como função “planejar as atividades relacionadas com o livro didático e estabelecer convênios com órgãos e instituições que assegurassem a produção do livro didático”.   ( Freitag, p. 12, 1993). Em 1938, foi criada a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD), subordinada ao INL. De 1938 até os dias atuais segue-se uma série de deliberações sobre o livro didático nacional, sempre subordinadas a uma comissão central ligada ao MEC.  Em 1968, cria-se a Fundação Nacional do Material Escolar, sob a qual fica subordinada, a partir de 1976, a CNLD. Outros órgãos se seguem como a FAE( Fundação de Assistência ao Estudante).

Nos últimos  anos, os professores e alunos tronaram-se escravos do livro didático. Segundo (Varizo, 1990) os professores de matemática planejam suas aulas distribuindo os capítulos do livro didático ao longo do ano. Os programas escolares nada mais são do que a cópia do indicie de livro didático. Em suas aulas os professores transferem para o quadro de giz o conteúdo abordado no livro didático adotado pela escola, alguns chegam mesmo a decorá-los. As tarefas escolares constituem-se de listas de exercício do livro. O único momento que alguns professores abandonam o livro usado em sala de aula é no momento de elaborar a prova, quando consultam  outros livros didáticos. Agindo assim demonstram que perderam sua autonomia e senso crítico. Essa idéia do ensino como cópia do que está no livro didático reflete na formação do aluno, tornando-os meros repetidores dos conteúdos dos livros.  Vemos nessa atitude o retorno do papel do professor da idade média, ele transcreve o livro no quadro de giz e exige que o aluno reproduza esse conteúdo tal como lhe foi apresentado. Desta forma, o livro didático no Brasil, passa a ser o único instrumento de trabalho do professor, além do quadro de giz, sendo tratado na sala de aula como uma verdade absoluta.

Percebe-se assim um modelo de ensino que não é muito diferente do que era feito no século XIII. Não é de se estranhar que os alunos fiquem condicionados  e nunca aprendam a  “ler” no sentido de compreenderem o conteúdo, pois apenas limitam-se a identificar a que tipo de problema  ou exercício pertence a situação proposta. Chegam a universidade acostumados aos manuais programados solicitando a perpetuação desta prática de ensino.

Ao longo dos 30 anos de experiência de magistério como professora de Didática e Prática de Ensino de Matemática,  tenho acompanhado o desenvolvimento dos livros didáticos de matemática ao fazer junto com meus alunos a análise do livro didático adotado pela escola campo de estágio, pude constatar que esses livros didáticos de matemática iam perdendo a qualidade, embora tivessem incorporado as novas técnicas de edição com muitas cores e com vários tipos de letras. Ficam muito ilustrados mas superficiais. Em geral de uns tempos para cá os livros didáticos de matemática foram sendo escritos sem muita preocupação com as questões pedagógicas ou matemáticas. Um autor tomava o livro anterior e ao reproduzí-lo acrescentava alguma informação nova, ou retirava outra informação. Um outro autor repetia o mesmo procedimento sobre o texto anterior. Outros autores optavam por modificar apenas a ordem de apresentação do conteúdo. O pior é que esse fato às vezes acontecia com o mesmo autor.

Desta forma alguns livros vão perdendo a qualidade a cada nova edição. Nada traduz melhor a situação descrita com relação aos livros didáticos de matemática do que as palavras proferidas por Morris ( p. 21, 1968) quando critica o ensino da álgebra “acabam se apresentando de forma desconexa, como se fossem páginas arrancadas de cem livros diferentes, nenhuma das quais transmite a vida, o sentido e o espírito da matemática”.

Desde a instituição do livro didático nacional muitos foram os caminhos e descaminhos da política nacional. Segundo Freitag (1993), passou-se da centralização para a descentralização, para a regionalização e para o livro de criança carente. Houve momentos em que as decisões ficavam centralizadas  num único órgão, visando a racionalidade das ações, acreditava-se que agindo assim, haveria mais economia, facilitaria a escolha de livros de qualidade e facilitaria sua distribuição. Em outros momentos, optou-se pela descentralização passando aos estados a responsabilidade da escolha dos livros, na tentativa de atender aos regionalismos.

Uma e outra apresentaram problemas. Na fase da centralização muitas vezes os livros não chegavam a tempo de serem distribuídos no inicio  do período letivo, além de enfrentarem outros problemas como ser mais vulneráveis ao lobby das editoras junto ao Ministério da Educação. No segundo caso, de descentralização, a responsabilidade era dos Estados.  A existência de comissões ou instituições estaduais trouxeram uma série de riscos, pois cada comissão estadual estabelecia seus próprios critérios de avaliação do livro como por exemplo: o da avaliação da qualidade do livro didático priorizando os aspectos materiais, outros já priorizavam o conteúdo, outros a proposta pedagógica. Estas prioridades tornam-se viéses na determinação da qualidade do livro didático.

Ainda não foram encontrada as condições ideais para a escolha do livro didático. Atualmente procurou-se uma forma mista, mais democrática, deixou-se ao professor a escolha do livro didático a ser adotado. Com a finalidade de orientar o processo de escolha pelo professor, o MEC criou comissões por disciplina, para a avaliação dos livros didáticos, os quais receberão ou não a recomendação de aplicação do MEC, como se fosse um selo de qualidade. A determinação dessa qualidade passa pela compatibilidade da abordagem do texto com os Parâmetros Curriculares Nacionais e com relação a incorporação dos conhecimentos das pesquisas pedagógicas matemáticas mais recentes. Essas comissões são formadas por profissionais e/ou pesquisadores da  educação. Na área da educação matemática têm sido convidados, essencialmente, professores/pesquisadores com trabalhos e/ou experiências do processo de ensino-aprendizagem da matemática, em alguns casos os professores avaliadores nunca tiveram experiência direta com a sala de aula do ensino fundamental e médio, suas experiências se restringem ao ensino universitário e pesquisas na área da educação matemática.

Esse procedimento teve como raciocínio  os seguintes fatos: o livro domina o processo de aprendizagem, melhor dizendo os professores seguem piamente o livro didático, logo bons livros possibilitarão uma melhora do conhecimento matemático por parte da comunidade escolar. O outro raciocínio foi que o professor é o elemento chave, ele é de fato a pedra angular no processo de ensino, deve caber portanto a ele a escolha do livro didático, pois é ele quem vai dar vida ao livro. Porém essa escolha fica restrita a triagem já realizada pelo MEC, cabe, portanto ao professor regente de classe escolher entre aqueles que já foram classificados pela comissão de avaliação do livro didático. Embora não exista nenhuma restrição oficial, ou seja explícita para que se escolha livros não constantes da lista dos recomendados pelo MEC existe uma inibição implícita.

A análise dos livros didáticos de matemática, pelo que podemos observar, têm se pautado sobre as recomendações da Comissão Internacional de Educação Matemática e o Plano Decenal de Educação que serviram de inspiração para a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacional para a Matemática do Ensino Fundamental e Médio.

No momento os livros didáticos de matemática brasileiros têm procurado incorporar as pesquisas pedagógicas na área da educação matemática,  não só na abordagem do conteúdo  como na determinação do próprio conteúdo. Buscando atender as recomendações dos Parâmetros Curriculares Nacionais, incorporam conteúdos de estatística, combinatória e bem mais modestamente  de probalidade. Dedicam mais espaço para a abordagem da geometria não restringindo-se a geometria euclideana, explorando conceitos tais como o de translações (simetria), rotações (isometrias) perspectiva e localização no espaço. A noção de função já começa a ser explorada no ensino fundamental. Alguns textos chegam a sugerir a utilização da máquina de calcular, embora o façam de forma bastante tímida. Procuram fugir  da abordagem anterior na qual apresentavam um problema ou exercício modelo seguido de vários propostos, visando a mecanização através da prática. 

Neste primeiro ano de aplicação esse processo não têm tido o êxito desejado, pelo menos em Goiás. Pelo pouco que podemos perceber através da nossa participação nas discussões dos parâmetros curriculares com professores de escolas estaduais e no contato com professores de matemática de escolas públicas e particulares da capital e do interior.  Foi dada ao professor de matemática a liberdade da escolha do livro didático, praticamente a totalidade desses professores limitaram-se a escolher o livro não pela análise do seu conteúdo, mas pelo número de estrelas que ele obteve na  avaliação feita pela comissão de análise do livro didático. Isto se dá por vários fatores. Ao meu ver o principal fator é a atitude acrítica do professor diante do livro didático que mencionamos anteriormente, além do comodismo e do conformismo da  maioria dos professores. Talvez esse conformismo e comodismo dos professores possa advir da desinformação, pois faltam a eles informações sobre o que se passa na área de educação matemática do ponto de vista da pesquisa e da reformulação dos saberes, faltando-lhes uma base teórica que lhes dêem condições para escolher seu livro, criticá-lo e interpretá-lo em sala de aula. Além do que testemunhamos que neste primeiro momento de mudanças os livros didáticos de matemática que incorporam  os novos conhecimentos ainda são pouco compreendidos pelos professores, ora por terem sido formados em uma escola que ainda não incorporou as novas perspectivas da pedagogia e da matemática, ora por serem professores leigos, na verdade uns e outros, são os “práticos”  da educação.

Outra constatação que pudemos fazer é que embora os livros didáticos apresentem uma nova abordagem, novos conteúdos, nova proposta pedagógica os professores acostumados a uma intensa submissão ao livro didático, ainda continuam com sua prática de ensino inalterada, isto é, reproduzindo fielmente o livro, e exigindo que seus alunos também o reproduza, através da memorização.

Indubitavelmente, no momento, existe um esforço da comunidade de educação matemática pela qualidade do livro didático, resultado do trabalho da Sociedade Brasileira de Educação Matemática, através de seus congressos e encontro de professores de matemática. O esforço das Universidades na qualificação de Educadores Matemáticos, em cursos de Especialização, Mestrado e Doutorado, tem permitido o crescimento da qualidade do conhecimento nesta área, permitindo que a cada ano, no Brasil,  se tenha um número maior de profissionais neste campo e mais qualificados. Não obstante em número ainda seja bastante modesto.

Mas isto não basta, além de qualificação os professores precisam de melhores salários e condições para se qualificar continuamente e preparar suas aulas, e conseqüentemente ter consciência do seu poder de decisão sobre o livro didático, bem como a consciência que o exercício desse seu poder poderá acarretar mudanças na política do livro didático brasileiro e modificar esse quadro de desqualificação da educação matemática no Brasil.

Além das questões abordadas, da sensação de que os objetivos propostos têm sido alcançados. Constata-se que o livro didático escrito para um clientela genérica não atende os princípios de adequação a diversidade encontrada na sala de aula, as características culturais da sala de aula, etc. . Levanatam-se novas hipóteses sobre a relação entre o livro didático e o fracasso na escolarização da matemática que ainda está presente.

Pergunta-se afinal qual o papel do livro didático na sala de aula. Será que o livro didático deve estar voltado para o uso do aluno, ou será que ele deve ser considerado apenas um guia para o professor? Poderá o professor ter vários livros didáticos como guia? Será que o livro didático deve servir de inspiração para desenvolver o processo de ensino e aprendizagem da matemática? Como isto resultaria num país com aproximadamente 50000 professores de matemática em atuação não licenciados em matemática?

BIBLIOGRAFIA

      FREITAG, Bárbara et alii. O livro didático em questão S. Paulo. Cortez. 1993

      GOFF, Jacques Le. Os intelectuais na idade média . S. Paulo. Brasiliense. 1989

MIORIM, Maria Ângela. Introdução à história da educação matemática. S. Paulo. Atual. 1998

      MORRIS, Kline O fracasso da matemática moderna. S. Paulo. IBRASA. 1973

SCHUBRING, Gert Analysis of historical textbooks in mathematics. Lecture Notes PUC-RJ 1997

TATON, R., História geral das ciências v2 e v3  Tomo 1. S. Paulo. Edição Européia do Livro 1960

VARIZO, Zaíra da Cunha Melo. História de vida e cotidiano do professor de matemática Goiânia UFG Dissertação de mestrado. 1990

 

 

Resumo - O livro didático. Ontem e hoje.

 

                   Este artigo apresenta de forma sucinta, a trajetória histórica do livro didático desde seu surgimento no século XIII  até os dias atuais no Brasil, com foco no livro didático da matemática. Destaca a importância do papel do livro didático na definição do ensino e aprendizagem da matemática.



[1] Este estudo teve como eixo básico os trabalhos de Jaques Le Goff Os intelectuais na idade média. S. Paulo Brasiliense. 1989, Gert Schubring Analysis of historical textbooks in mathematics – Lecture Notes PUC-RJ 1997 e foi apoiado fundamentalmente nos trabalhos de Maria Ângela Miorim. Introdução à história da educação. S. Paulo Atual. 1998 Barbara Freitag et alii O livro didático em questão. S. Paulo Cortez. 1993

[2] Professora Titular do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade Federal de Goiás

[3] Publicado na revista da FE/UFG, volume 6 números 1 e2 jan/dez

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