IMAGENS DO BRASIL: UMA POSSIBILIDADE DE LEITURA NA ESCOLA.[1]

Ana Lucia S. de O. Nunes[2]

 

Introdução

 

Este trabalho buscou estabelecer o estudo de quatro imagens feitas por brasileiros. Foram contemplados, um ilustrador: Fido Nesti, um fotógrafo: Sebastião Salgado e dois artistas plásticos: Cândido Portinari e Milton Dacosta.

Buscando melhor compreensão do processo optei por uma breve defesa da importância da leitura de imagem na escola para o surgimento de uma consciência crítica com relação ao mundo e a sociedade que estamos inseridos. Passando pela leitura detalhada das imagens escolhidas e terminando com as considerações obtidas no intercruzamento dos tipos distintos de representação pictórica, escolhidos para este trabalho.

 

 

1o Capítulo

 A Imagem na educação.

            Atualmente, mais do que em qualquer outro período histórico da humanidade, vivemos rodeados de imagens. O mundo pós-moderno através da televisão, de campanhas publicitárias, da moda, de ambientes telemáticos, dentre outras possibilidades, nos revela uma inserção cultural que tem como premissa à visualidade.

Partindo do princípio de que antes de aprendermos a ler ou a escrever, nós vemos as imagens que nos cercam, e convivemos com elas por toda a nossa vida, surge a pergunta: de que maneira o ambiente educacional lida com estas imagens? Nesse sentido me refiro a qualquer tipo de manifestação imagética, representativa do real ou do imaginário.

Os educadores, de uma maneira geral, deveriam se preocupar com a presença maciça de imagens no cotidiano de seus alunos. Tais representações não são isentas e muitas vezes exigem leituras críticas por parte de todos nós, observadores/consumidores.

A leitura de imagens deveria ocupar um espaço fundamental dentro da educação. Segundo Barbosa (1995, p.14) “a leitura de imagens na escola prepararia os alunos para a compreensão da gramática visual de qualquer imagem, artística ou não, na aula de arte ou no cotidiano”. Devemos ser conscientes de que as imagens são, em alguns momentos, produzidas para nos atentar ou convencer sobre regras, valores, idéias, modos de relacionamento ou comportamento que muitas vezes não condizem com nossos próprios valores ou posturas. Neste sentido a alfabetização visual se torna algo extremamente importante para ajudar as pessoas no discernimento do que determinada imagem realmente quer nos dizer.

Existem várias definições e estudos a respeito da leitura de imagens. Martins (1994), apud Pillar (2001, p.11), afirma que “as inúmeras concepções vigentes sobre leitura podem ser sintetizadas em duas caracterizações: (a) leitura como decodificação mecânica; (b) leitura como um processo de compreensão.” Estas duas concepções são indissociáveis e complementares. É necessário um detalhamento, uma descrição formal de elementos da imagem, mas por outro lado é também necessário o entendimento do seu sentido, a sua natureza simbólica.

Quando conseguimos estabelecer parâmetros individuais de leitura de imagens, estamos de alguma maneira aprendendo a ler o mundo. Tais leituras são individuais, pois são carregadas da subjetividade do leitor.

Tomando como base o pensamento de Rossi (2003) devemos lembrar sempre que o conhecimento se constrói sócio-culturalmente. A partir desta constatação uma imagem pode ser lida diferentemente em variados contextos culturais.

O importante, no entanto, é que a educação estética dos alunos seja pensada e trabalhada pelos professores de qualquer nível de ensino. Barbosa (2002, p.14) vai ainda além da educação estética e comenta que “somente a ação inteligente e empática do professor pode tornar a Arte ingrediente essencial para favorecer o crescimento individual e o comportamento de cidadão como fruidor de cultura e conhecedor da construção de sua própria nação”. Mais do que leitores, apreciadores e críticos das imagens e da Arte, preocupemos também na formação global do cidadão.

2o Capítulo

1 - Leitura das imagens

 

            As imagens escolhidas para este estudo são quatro reproduções coloridas, sendo que uma é a ilustração de um passatempo infantil de uma revista, outra uma fotografia documental e as demais são duas obras de arte brasileira.

 A escolha das imagens se baseou pelo o que elas possuem de semelhante. São representações de crianças brincando, de diferentes formas.

De acordo com Machado (1995, p.21) “brincar é nossa primeira forma de cultura. (...) A cultura é o jeito de as pessoas conviverem, se expressarem, é o modo como as crianças brincam, como os adultos vivem, trabalham, fazem arte. (...) O brincar é uma linguagem”.A importância de brincar para as crianças é mais do que um puro divertimento. A brincadeira é simbólica, imaginativa, representativa de um contexto, e capaz de promover o desenvolvimento afetivo, cognitivo e social da criança.

A relação de semelhança destas imagens poderia ser um ponto de partida para um projeto de ensino/aprendizagem em arte. Após a fruição de cada representação seria possível discutir questões, semióticas, sociais, econômicas, políticas e artísticas, dependendo do enfoque desejado.

Neste ponto detalharei cada imagem escolhida destacando seus elementos formais e simbólicos, promovendo a leitura de cada uma delas, seus sentidos e significações.

 

1.1 - Imagem 1:  

Ilustração de Fido Nesti

 

Esta imagem foi obtida através da reprodução de uma ilustração que mostra um passatempo da revista Recreio n° 180, da Editora Abril do dia 21 de agosto de 2003. É uma figura do ilustrador brasileiro Fido Nesti. Este passatempo propõe uma espécie de busca de detalhes que compõe a imagem. O participante da brincadeira deve procurar os itens colocados em destaque no canto superior direito da imagem observando atentamente a mesma.

Nesta figura selecionada, a representação mostra uma aula de pintura ao ar livre (apesar do texto contido no passatempo indicar uma aula de desenho). Temos na ilustração uma criança que serve de modelo-vivo e posa para os demais alunos. Este modelo está de pé em cima de um suporte de madeira, equilibrando-se com dificuldade em um só pé e, erguendo numa das mãos um vaso decorado que contém apenas uma flor.

A aula acontece numa paisagem campestre, estão representadas três árvores frutíferas, nuvens, montanhas, um avião no céu, um formigueiro, além de vários elementos na grama, como tubos de tintas vazios, meias, osso, flores e folhas, sapatos, cacos de um vaso quebrado, entre outras coisas.

É sugerida a presença de três alunos[3] participantes da aula, sendo que um é representado de meio corpo, outro aparece de corpo inteiro e apenas a mão do terceiro aluno é representada. Apesar do modelo, cada aluno em sua tela cria uma pintura própria que preserva apenas a pose e o movimento colocado pelo modelo.

Em primeiro plano, do lado direito, temos o Aluno 1, uma criança que pinta uma tela que representa uma espécie de pirata que, ao contrário do modelo observado, tem em uma das mãos uma espada em riste, substituindo o vaso segurado pelo modelo. No outro braço a mão é substituída por um gancho. Possui uma barba verde, tapa olho, uma perna de pau, chapéu decorado com caveira, espada e pincel. As roupas do pirata são ricas em detalhes e acessórios. O trabalho sugere uma paisagem marinha com água, peixe, ilhas, coqueiros, pássaros, nuvens e sol.

O Aluno 1 veste, por sua vez, uma boina e uma camiseta, ambas respingadas com tinta, e uma espécie de macacão com bolsos traseiros que acondicionam tinta e pincel. Seu nariz e sua mão que detém  o pincel estão, também, sujos de tinta. Segura em uma das mãos uma paleta e na outra o pincel com que trabalha. Tem um terceiro pincel atrás da orelha.

Do lado esquerdo, ainda em primeiro plano, observa-se uma maleta de pintura, que além de tintas, pincéis e paleta, mostra um boneco típico para auxiliar no desenho de figura humana com suas proporções clássicas. Uma mão que segura um pincel é a única prova da existência figurativa deste Aluno 3.

O quadro que está sendo pintado pelo Aluno 3 neste detalhe da imagem, é uma tentativa de representação clássica de um “herói” greco-romano, vestido com uma túnica, coroado de louros e com uma faixa na cabeça. Esta figura está de perfil, carrega um vaso com design e motivos pictóricos do contexto histórico sugerido. Na tela a paisagem mostra colunas jônicas, árvores, pássaros, frutos e o sol.  A flor que está no vaso do modelo, é representada na porção inferior direita da tela do aluno 3.

Ao fundo, do lado direito temos o Aluno 2 , que pinta uma tela que insinua uma estética modernista. A figura humana retratada na tela, está de boina e  patins de gelo, segura um vaso numa das mãos, tem um tom de pele amarelado e a disposição do cabelo sugere velocidade. O fundo insinua montanhas, tem uma lua na parte superior e um floco de neve na parte inferior.

O Aluno 2 também está de boina, tem os cabelos longos presos por algo que poderia ser um elástico, o tom de pele é mais escuro, como o do Aluno 3 e diferente dos demais, usa brinco e colar. Uma de suas mãos trabalha com o pincel na tela e a outra segura uma paleta. Suas roupas estão limpas.

Não me senti confortável para dizer quais destas crianças são representativas do gênero masculino ou feminino, me parecem andróginas, podendo ser classificadas tanto como meninas como meninos. Aparentemente o modelo  e o Aluno 1 são meninos e o Aluno 2 é menina.

A imagem é muita colorida, com uma enorme variedade de tons o que confere uma luminosidade e uma alegoria a toda a cena descrita.

 

1.2 - Imagem 2

 

“Criança com carneirinho” – Cândido Portinari

Esta pintura é do artista modernista Cândido Portinari. Nesta imagem o pintor retrata uma criança construindo algo com gravetos. Do lado da criança temos a representação de um animal, que pelo título da obra se trata de um carneiro.

A paisagem sugere um local desolado, árido, sem nenhuma construção arquitetônica, apenas alguns montes ao fundo. Aparece no céu uma espécie de lua, mas não é possível afirmar se é dia ou noite, talvez um entardecer.

Atrás da criança e do animal percebemos uma arapuca, que é um artefato feito de galhos que tem a finalidade de capturar pequenos animais, como pássaros ou roedores. A criança retratada se veste de maneira simples, está descalça, de joelhos no chão, com o corpo curvado para frente, a cabeça abaixada, e empenhado na construção de um outro objeto de madeira.

As figuras de destaque do quadro (a figura humana e o animal) possuem uma estética multifacetada que remete ao cubismo, com linhas cortadas e ângulos retos.

No interior do Brasil, principalmente na zona rural é muito comum a criança confeccionar seus brinquedos. Portinari possui inúmeras obras de arte em que retratou crianças brincando, representações surgidas de suas memórias de sua infância.

1.3 - Imagem 3

“Ceará 1983” – Sebastião Salgado

Nesta fotografia preta e branca, de Sebastião Salgado, são retratadas duas crianças  nordestinas, brasileiras que estão brincando com ossos. Essas crianças se encontram no interior de uma construção supostamente residencial. A luminosidade natural que vem de fora deu a imagem um aspecto sombrio.

Aparece também na foto, uma porta de madeira, dividida ao meio, típica de locais onde se criam animais soltos, para que os mesmos não adentrem as casas. No umbral da porta aparecem os tijolos levando a hipótese de que a casa não é rebocada e sim de tijolos aparentes. O chão é de adobe.

Existe um movimento repetitivo e interessante, formando um meio círculo, que se dá a partir dos braços da criança atrás da porta (criança 1), as pernas da criança que se encontra agachada (criança 2) e as orelhas do bode que está do lado de fora.

A fotografia parece ter sido tirada casualmente durante um momento de brincadeira. Porém a disposição dos figurantes e a composição pode ter sido arranjada pelo fotógrafo.

 É um registro documental que revela uma denúncia social e política. Mostra a pobreza, a desigualdade de um Brasil em que crianças brincam com restos, ossos, enquanto sabemos que outras possuem brinquedos caros.

Salgado, na legenda da foto relata: “Cada osso tem um nome e uma função nas brincadeiras que representam a vida dos rebanhos do lugar. Assim, os ossos menores alinhados são de carneiros e materializam os carneiros, que se deslocam sempre em conjunto; os outros ossos pertencem à cavalos, jumentos e bois que por sua vez tomaram forma e vida no imaginário lúdico dos meninos sertanejos”. Neste caso, a brincadeira reconstrói o mundo real das crianças.

 

1.4 - Imagem 4

Menina com borboleta, 1948 – 1949 – Milton Dacosta

Esta imagem de Milton Dacosta reproduz uma menina brincando de pegar borboletas. É uma obra sensível e acolhedora. A criança está com um vestido solto, em tons de amarelo e laranja. Uma de suas mãos está erguida e a outra segura uma redinha própria para caçar borboletas. Parece se divertir no seu intento, a posição de seu corpo poderia ser de um passo de dança.

São pintadas três borboletas menores e uma maior, quase do tamanho da criança. As cores predominantes em toda a obra são matizes de amarelos, azuis e as suas combinações, entre si, com branco e preto.

A menina faz um movimento com o corpo que parece com o desenho da metade de uma asa de borboleta. O que contribui para essa observação são os cabelos da criança que estão levantados, como se ventasse, e o fato dela se encontrar apoiada em apenas um dos pés, tendo erguido o outro, o que confere mais movimento a imagem.

Predomina uma estética modernista na obra, característica do contexto em que foi pintada. Existem linhas dividindo a imagem e o rosto lembra uma máscara.

 

Considerações finais

Crianças brincando quase sempre são imagens leves, alegres e agradáveis. A escolha das imagens deste trabalho não reforça estas idéias. A exceção seria a imagem 4, que realmente representa uma menina brincando na sua dança ou sua caçada de borboletas. É uma representação suave, pintada com cores quentes, sendo muito aprazível. Contudo esta criança não sorri.

A imagem 1, a ilustração de Fido Nesti, é uma representação de uma aula de arte, em que os alunos estão gostando da atividade e soltando a imaginação. Foi escolhida pela relevância de uma atividade proposta por uma revista de circulação nacional, voltada para o público infantil e na qual se propõe uma leitura atenta para se buscar objetos espalhados na mesma.

No entanto esta imagem 1 pode contribuir para reforçar a idéia de que Arte serve apenas para desenvolver a expressividade e criatividade dos alunos e nunca um conteúdo a ser apreendido que tem características únicas e ensináveis, como em qualquer outra área do conhecimento.

As imagens 2 e 3 foram produzidas por meios tão diferentes mas tem um ponto em comum. São representativas de crianças que constroem seus brinquedos mesmo quando não possuem recursos materiais apropriados para tal. São representações tristes, melancólicas, reflexivas.

As semelhanças e diferenças encontradas nas analises das imagens, constituem um corpus de conteúdo perfeitamente possível e interessante de ser trabalhado na sala de aula, e não apenas nas aulas de arte. Um conteúdo para abordagens e desenvolvimento de conceitos como: brincadeira, miséria, brinquedo, jogo, infância, arte, representação, entre outros.

   

Referências Bibliográficas

  BARBOSA, Ana Mae. Tópicos Utópicos.Belo Horizonte; C/ Arte, 1998. 

_________ . Inquietações e mudanças no Ensino da Arte. São Paulo: Cortez,2002

_________. Educação e desenvolvimento cultural e artístico. Educação & realidade, Porto alegre, v.2, n.2, p. 9-17, jul/dez, 1995.

BUORO, Anamelia Bueno. Olhos que Pintam – a leitura da imagem e o ensino da   arte. São Paulo: Educ/Fapesp/Cortez, 2002

COSTELLA, Antonio F. Para apreciar a arte – roteiro didático. São Paulo: Editora SENAC, 1997.  

GALEANO, Eduardo. Nossa América; revista do Memorial da América Latina, 2000, n.2 , p. 92

MACHADO, Marina M. O Brinquedo-sucata e a criança – a importância do brincar. São Paulo: Edições Loyola, 1995.

PILLAR, Analice Dutra (org.). A educação do olhar no ensino das artes. Porto Alegre: Mediação, 2001.

ROSSI, Maria Helena Wagner. Imagens que falam – leitura da arte na escola. Porto Alegre: mediação, 2003. 

SALGADO, Sebastião. Terra. São Paulo: Cia das Letras, 1997.



[1] Nesta cópia em disquete não foi possível anexar as imagens pois as mesmas ocupam muito espaço em disco.

[2] Ana Lucia S. de O. Nunes é licenciada em artes visuais, professora substituta de Prática Pedagógica em Artes Visuais na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás e mestranda em Cultura Visual da mesma unidade.

[3] A partir deste ponto do texto para facilitar a escrita descritiva, classifiquei estes elementos da seguinte forma: Aluno 1 – O que aparece de meio corpo, Aluno 2 – O que aparece de corpo inteiro e Aluno 3 – o que é representado apenas pela mão.

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