A DESIGUALDADE COMO FATOR DE EXCLUSÃO NO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM

Profa Cláudia S. G. Barreto Bezerra

Docente da Universidade Federal de Goiás e mestranda em Psicologia do Desenvolvimento na Universidade Católica de Goiás/UCG. cbarreto@cepae.ufg.br.

Profa Mercedes Villa Cupolillo

Doutora em Psicologia pela Dundee University – Escócia, docente da UCG. E-mail: vernisage@zipmail..com.br.

Numa cultura que naturalizou a normalidade, as diferenças transformaram-se em conceito de desigualdade e o que não é igual não é reconhecido.

            Por vivermos em uma cultura em que prevalece o domínio da linguagem e da escrita como forma de poder, os que não alcançam essa competência perdem espaço e são excluídos dos processos considerados mais significativos da cultura.

            Compreende-se por aprendizagem um processo dinâmico de desenvolvimento de habilidades, atitudes, valores, que se dão permeados pelas relações sociais e culturais. Uma construção dialética que valoriza toda uma história de vivências adquiridas pelo sujeito e que gera transformações que vão do individual para o coletivo e vice-versa.

            Para Vygotsky (2001) o aprendizado considera a interdependência dos indivíduos envolvidos, o que se pode deduzir por sua ênfase nos processos sócio-históricos. Ele coloca a aprendizagem como um processo que se diferencia dos fatores inatos, como, por exemplo, a capacidade de digestão a qual o indivíduo já nasce com ela. Diferencia-se também dos processos de maturação do organismo que são independentes da informação do ambiente, exemplo a maturação sexual.

O termo que ele utiliza para aprendizagem em russo é obuchenie que significa algo como processo de ensino-aprendizagem dando, assim, a noção de relação muito próxima entre aquele que aprende, aquele que ensina e a relação entre eles (OLIVEIRA, 1997).

Essa ênfase na relação do aprendizado confirma o caráter essencialmente social que a escola deve ter, um lugar de construção de saberes, de trocas de experiências, de diversidade, de respeito às diferentes formas de aprender. A sala de aula é um fenômeno complexo, onde está presente uma grande diversidade de culturas, classes sociais, sentimentos.

Um estudo de caso que faz parte da pesquisa intitulada A Constituição Subjetiva da Criança Frente ao Fracasso Escolar (BEZERRA, 2003) apresenta contribuições para essa reflexão ao considerar a íntima relação entre o movimento do aprender e a constituição subjetiva da criança em processo de escolarização. Qual o sentido de aprender para uma criança tida e tratada como fracassada na escola?

“É ruim bombar (ficar reprovada) que os meninos ficam debochando da nossa cara. Os meninos ficam falando pra mim na hora do recreio bombona, bombona, bombona, bombona, bombona!”.

(Carla, 9 anos)

Carla expressa sentimentos diversos ao falar de seu aprendizado e de suas dificuldades na escola, ansiedade, nervosismo, vergonha, angústia. Ao mesmo tempo em que diz não se importar com isso se contradiz. Demonstra ser motivo de zombaria por parte dos colegas por ser aluna repetente. Esse contexto aponta para a importância do professor trabalhar com as diferentes formas de aprender, mostrar a complexidade que envolve esse processo que é singular para cada criança. Uma teia de significados que pode ser a chave de compreensão para muitas relações que se estabelecem no percurso do desenvolvimento da criança.

Uma outra questão evidenciada é o sentido de fracasso para a família de Carla. Eles sinalizam para ela que o que seu esforço não é suficiente e esta por sua vez não sabe mais como lidar com a situação. Ela não entende como se dá o processo, com muita inocência acusa as palavras por não conseguir ler e escrever:

“A gente quer aprender, mas eu acho que as palavras que não deixa.a gente aprender...”.

            Carla vivencia sentimentos de fracasso na escola, é muitas vezes relegada a uma posição social inferior e inserida em um espiral de exclusão por não se adequar a uma estrutura pedagógica padronizada e descontextualizada.

Para se trabalhar com a diversidade no contexto escolar é preciso considerar a singularidade de cada um, privilegiando suas competências. A competência como capacidade de articular um conjunto de recursos próprios, que são as experiências, habilidades já adquiridas para resolver as mais variadas situações.

Quando o processo de produção de conhecimentos se dá num contexto isolado de sua realidade social e desprovido das relações existentes entre os fenômenos, a criança encontra dificuldades em fazer relações e dar sentido às suas construções. A prática de ensino centrada somente no resultado da aprendizagem ignora o processo no qual ela se deu e como a criança construiu suas significações e sentidos. Em muitos casos ainda, a escola não compreende as diferentes formas utilizadas pela criança para elaborar seu aprendizado, exigindo dela conceituações que ainda não é capaz de elaborar.

            Embora avanços tenham ocorrido em nossa educação, ainda há fortes tendências à padronização do ato de educar que exige aprendizado na mesma medida.

            Contrário a essa tendência, Duarte (2000) questiona a educação como legitimadora de concepções ideologicamente articuladas à sociedade capitalista contemporânea. Ele afirma que o sistema educacional brasileiro é um projeto político que visa, fundamentalmente, adequar as estruturas sociais ao processo de reprodução do capital.

A proposta educacional neoliberal tem como objetivo formar o homem para que ele se torne cada vez mais produtivo, eficaz diante das exigências do mercado, cuja preocupação primordial é o acúmulo de capital. Nessa perspectiva adota-se como modelo uma sociedade que reforça formas de vida e de desenvolvimento das elites como padrão de normalidade, padronizando também a metodologia e a avaliação. Assim, não trabalha com as diferenças, não compreende que cada indivíduo tem uma maneira própria de construir seus conhecimentos e não consegue enxergar as formas de aprendizagem que se configuram fora dos seus padrões.

Ao apresentar um desenvolvimento diferenciado Carla não corresponde a um ideal de aprendizagem, é rotulada como não competente e seu tempo de aprender não é respeitado. Assim, é transformado as formas diferenciadas de aprender em deficiência de aprendizagem. O diferente torna-se assim anormal.

Na opinião de Bock (2001), o diferente é menos provável, ou seja, é menos comum por haverem várias possibilidades para isso. Por exemplo, não foi dado à criança acesso às condições necessárias para o desenvolvimento de determinada característica, ou se deu acesso a elas, o aproveitamento não foi total, talvez por limitações físicas, como um problema na visão. Pode ocorrer ainda que tenha sido dado acesso àquelas condições, não houve limitações, mas as relações que a criança estabeleceu para o processo ensino-aprendizagem foram sufocadas por emoções e conflitos que não possibilitaram o desenvolvimento comum. As diferenças numa cultura que naturalizou a normalidade transformaram-se em conceito de desigualdade e o que não é igual não é reconhecido.

            A partir daí, busca-se refletir sobre as contribuições da psicologia histórico-cultural para uma prática educacional mais inclusiva onde se respeite as diferenças e se considere que cada um subjetiva suas significações, permeadas pelas relações sociais que são estabelecidas com seu mundo. Compreende-se desse modo que cada pessoa configura de sua maneira os processos internos de desenvolvimento, dentro do âmbito das inter-relações.

            A obra de Vygotsky concebeu a aprendizagem como princípio básico de desenvolvimento. Divergindo da afirmação de Piaget (1896-1980) de que o desenvolvimento conduz ao aprendizado, Vygotsky sustenta que o aprendizado é que na verdade leva ao desenvolvimento. Assim, ele defende dois níveis de desenvolvimento: o desenvolvimento real, que se refere às etapas já alcançadas pelo sujeito e o desenvolvimento potencial que é a capacidade de desempenhar tarefas com a mediação de outra pessoa mais habilitada. A distância entre o nível de desenvolvimento real e o potencial é denominada de zona de desenvolvimento proximal, ZDP, uma área de atuação fundamental no processo de construção do conhecimento. Vygotsky (2000) ressalta que a ZDP é um domínio em constantes transformações, pois o que a criança realiza hoje com ajuda, amanhã ela o fará sozinha. Essa zona revela as funções que ainda não amadureceram, chamadas por ele de “brotos” ou “flores” do desenvolvimento, em vez de frutos. Dessa forma, conclui-se que o desenvolvimento avança de forma mais lenta que o aprendizado.

            Essa forma de intervenção no desempenho de uma pessoa, na relação de educar e aprender, é essencial na teoria de Vygotsky porque ela atribui uma grande importância às inter-relações nessa construção, o desenvolvimento individual se dá num ambiente social e as diversas formas de relação com o outro são fundamentais para a estruturação do ser psicológico individual (OLIVEIRA, 1997).

            Enfim, as relações que se estabelecem no processo de desenvolvimento da criança tornam-se mais significativas quando ela estabelece ligação com suas vivências, contextualiza o saber e constrói instrumentos para criar e recriar sua realidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao levantar reflexões sobre a diversidade no contexto pedagógico, buscou-se, neste estudo, apresentar reflexões sobre uma educação vinculada à prática social, através de um processo pedagógico que supere a padronização do ato de aprender, valorizando as competências do educando. E também que esse contexto produza sujeitos criativos nas relações que se dão no âmbito da complexidade e com pensar dialético, realçando a importância da produção de conhecimentos como construções significativas da realidade; enquanto fenômeno social, a educação incorpora o percurso histórico-social dos homens, ocorrido através de suas atividades.

Ressalta-se aqui um processo que se torne uma mediação na constituição de uma prática social de luta contra as formas de alienação impostas pelo sistema capitalista. Não se fala, certamente, em fórmulas mágicas, mas em mudanças que gerem práticas comprometidas com a construção de uma sociedade menos injusta. Uma proposta que visa à relação do aprender com a posição social do educando valorizando suas habilidades e trabalhando suas limitações, elementos que fazem parte da grande diversidade do contexto pedagógico.

Um dos grandes desafios para professores e psicólogos é compreender toda uma gama de complexidades que antecipa a organização do aprender e, conseqüentemente, o desenvolvimento individual articulado nos diferentes espaços. Aí se vê a necessidade do elo expressivo entre idéias psicológicas e pedagógicas nas concepções sobre o desenvolvimento humano.

Assim sendo, esse estudo, mediado pelas concepções de Vygotsky e da psicologia histórico-cultural, não teve o propósito de esgotar as possibilidades de compreensão da diversidade ou das diferenças, mas questionar a normalidade muitas vezes imposta em nossa sociedade, que oculta a origem social das diferenças e com isso discrimina e exclui. Posicionar-se de forma crítica a isso é entender o desenvolvimento do homem em unidade com seu mundo psicológico, como uma conquista da sociedade humana, gerando projetos de vida que discutem a leitura histórico-cultural das relações sociais.

BIBLIOGRAFIA

BEZERRA, C. S. G. B. (in press) Aprendizagem e subjetividade: Um estudo de caso baseado na perspectiva histórico-cultural. Revista Fórum Crítico da Educação. RJ. ISEP. 2003.

BOCK, A. M. B. Psicologia Sócio-Histórica. SP. Cortez. 2001.

DUARTE, N. Vygotsky e o “Aprender a Aprender” Crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vygotskyana. Campinas. SP. Autores Associados. 2000.

OLIVEIRA, M. K. Vygotsky Aprendizado e desenvolvimento um processo sócio-histórico. SP. Scipione. 1997.

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. SP. Martins Fontes. 2000.

VYGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. SP. Martins Fontes. 2001

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