“Espelho, estranho espelho”

 

                                                                                                         Glacy Queirós de Roure 

 

 

O desejo do homem é o desejo do outro. [...] O sujeito localiza e reconhece originalmente o desejo por intermédio não só da sua própria imagem, mas também do corpo de seu semelhante. (Lacan, [07/4/54], 1986,  p.172) 

 

Inicio este trabalho  com a  apresentação da obra “O espelho” de Sirom Franco, cuja densidade interpretativa permite-me refletir  sobre  as relações especulares de desejo, amor  e ódio a serem enfrentadas tanto pelos adolescentes quanto por seus pais  no decorrer da adolescência. Tempo marcado por um duplo estranhamento.  

Mas, antes de continuar, lembro rapidamente o mito de Narciso que ao se deixar seduzir pela própria  imagem refletida  nas águas de um lago, debruça-se sobre esta e deixa-se  morrer. Tal como atesta a lenda de Narciso,  o espelho parece ter em nosso tempo a capacidade de, por si só, assegurar-nos de nossa beleza, de nossa perfeição, de nossa  completude. É ele que proporciona a ilusão de uma imagem capaz de certificar,  de  que mesmo com o passar dos anos pode-se  continuar  belo e desejável

Para a psicanálise, face ao espelho,  é como um outro que o sujeito  se vê,  se observa  e se reconhece pela primeira  vez, instaurando neste momento um processo contínuo de desconhecimento quanto à verdade de seu ser e a alienação à imagem que irá fazer de si mesmo.  Momento designado por Lacan([1949]1998a)  como “estádio do espelho”,  anterior a entrada no Édipo.   

Quanto a tal funcionamento, este só pode ser compreendido em sua complexidade se  considerarmos o fato de que vivemos em uma sociedade do espetáculo (Debord, 1997) determinada por uma cultura narcísica na qual o parecer parece conjugar-se ao ter em detrimento do ser.

 É importante destacar que a utilização metafórica do espelho  por Lacan se dá  para  pensar  o poder formativo da imagem e a estruturação inicial do   psiquismo. Com efeito, a expressão  "estádio do espelho" foi  elaborada para explicar o processo de constituição do “eu” diante de uma imagem, articulando-o ao conceito de narcisismo operado por Freud. Lacan afirma que o "estádio do espelho" deve ser compreendido como uma identificação, uma transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem.   O que equivale dizer que uma transformação é produzida no sujeito desde que ele a assume por um processo de identificação. Fase situada entre o sexto e o décimo oitavo mês, período caracterizado pela imaturidade do sistema nervoso. [1]

Lacan afirma que será na relação do sujeito consigo mesmo como um outro mediante uma imagem que  encontraremos a razão de sua constituição. "Eu" que se constitui inicialmente como "eu ideal", originando, posteriormente, identificações secundárias (ideal do eu)[2].  Momento em que se pode ressaltar o papel que o   mestre poderá vir a ocupar na vida subjetiva de seu aluno. Questão a que retornaremos na  parte final do trabalho.   

Tal "estádio" é antecedido por um momento pré-especular, no qual a criança vê-se como fragmentada; não fazendo nenhuma diferença entre seu corpo e o de sua mãe, entre ela e o mundo exterior. Diante do espelho, carregada pela mãe, ela procura e roga seu reconhecimento. “Mãe que a olha e reconhece: ‘Sim, és tu, Pedro, meu filho, que com um ‘és tu’, dará um ‘sou eu’ (Chemama,1995). É do colo da mãe que imaginariamente a criança antecipa a  forma de seu corpo.  É porque a criança é carregada por uma mãe, cujo olhar a olha, uma mãe que a nomeia que esta  é incluída na família, na sociedade e, no registro simbólico. A mãe lhe dá um lugar, a partir do qual o mundo poderá ser organizado.

Diante da imagem a criança diz "eu", um "eu" agora composto enquanto unidade. Momento em que o pequeno "infante", tomado de amor  por si mesmo, constitui-se imaginariamente de forma narcísica. Eis ai o começo de uma estruturação subjetiva   denominado por Freud ([1915]1990) como narcisimo primário. Este  momento  de unificação do "eu"  constitui  a instância do "eu ideal".

É a imagem especular que dá à criança a forma intuitiva de seu corpo, bem como a relação de seu corpo com a realidade que a cerca. Ou seja, é ela a responsável pela fundação da instância do "eu". A criança irá então participar imaginariamente, da forma total de seu corpo e da sua constituição enquanto "eu",  "eu ideal". A instância do eu é desta forma fundada em uma ordem imaginária (Roza, 1995).

Segundo Freud a  forma do "eu ideal"  é  uma imagem idealizada do eu sendo esta  construída na sua quase totalidade pelos pais, que projetam no filho, fazendo ressurgir o narcisismo que eles próprios tiveram que abandonar por exigência da realidade. Portanto, inicialmente o “eu ideal” é o efeito do discurso apaixonado dos pais que abandona qualquer forma de consciência critica para produzir uma imagem idealizada do filho recém nascido.

Faz-se necessário ressaltar que essa primeira  unidade de representações não é definitiva permanecendo  para sempre idêntica a si mesma,  uma vez constituída será continuamente  renovada ou acrescentada de novos traços. Na verdade, o "estádio do espelho", representa o momento de uma primeira relação narcisista do sujeito consigo mesmo, que se revela  irremediavelmente, e para sempre, marcada pelo outro. Um momento de constituição e alienação, portanto fundamental na constituição de um determinado tipo de desenvolvimento do "eu". Estádio que não é superado, mas remetido a uma configuração  insuperável de identificações.

Conforme afirmei anteriormente, este processo de identificação narcisista (eu ideal), será o ponto de partida das séries identificatórias com as quais o “eu” será constituído, sendo sua função de "normalização libidinal. Momento que, a partir de então, caracterizar-se-á pelo esforço do sujeito em coincidir com a imagem que satisfaria primeiramente aos pais e depois aos outros (identificações secundárias).  

É importante destacar  que este primeira  imagem apreendida pela criança é uma imagem repleta de desejo constituída pelo desejo do Outro. Face à imagem do outro a criança se identifica e se reconhece. Tal afirmação possibilita-nos afirmar que o desejo, antes do aparecimento da linguagem, só existe no plano de uma relação especular, dual, alienado no outro. Isto é,  ele só é visto no outro.

De modo que a partir deste momento inaugural em que a criança assume narcisicamente uma determinada imagem para si mesma, essa mesma imagem revela-se enquanto suporte de identificação primária constituindo  o ponto inaugural de sua alienação, da alienação de seu desejo.

Neste ponto é importante observar o papel dos pais, e de seus desejos, neste primeiro momento  identificatório, na medida em que  é seu desejo que é apreendido pela criança enquanto seu.  De fato, a  revivescência do narcisismo  dos pais em relação a seus filhos refletir-se-á na imagem no espelho. A imagem captada pela criança —  construída pelos pais que   projetam no filho seus sonhos, seus desejos e suas perdas — é marcada pela falta e pelo desejo.

Lacan denomina esse tipo de relação dual estabelecida no estádio do espelho como imaginária. Na busca de "si" o sujeito  encontra apenas a imagem do outro com a qual se identifica e na qual se aliena. É o outro que está de posse de sua imagem e de seu desejo, já que  percebe seu próprio corpo na imagem do outro, identificação constitutiva e alienante. Processo que apresenta  como conseqüência imediata a necessidade de destruir o outro, fonte de sua alienação. Motivo  pelo qual Lacan assinala que narcisismo e agressividade são correlativos e contemporâneos (1986, 1998a, 1998b).  Cito Lacan (1986, [05/05/54], p. 197-198):    

 

Antes que o desejo aprenda a se reconhecer pelo símbolo, ele só é visto no outro. Na origem, antes da linguagem, o desejo só existe no plano da relação imaginária do estado especular, projetado, alienado no outro. A tensão que ele provoca é então desprovida de saída. Quer  dizer, não tem saída [...]  se não a destruição do outro. O desejo do sujeito só pode, nessa relação, se confirmar através de uma concorrência , de uma rivalidade absoluta com o outro, quanto ao objeto para o qual tende. E cada vez que nos aproximamos, num sujeito, dessa alienação primordial, se engendra a mais radical agressividade — o desejo do desaparecimento do outro enquanto suporte do desejo do sujeito.

 

Segundo Freud (1915), a superação dessa relação mortífera e o conseqüente desenvolvimento do “eu” só ocorre, por um deslocamento da libido  para um “ideal do eu”  imposto de fora. A regulação das relações entre o "eu" e o “eu ideal” (imaginário) só se faz de fora pelo "ideal do eu"(simbólico).  Vale assinalar que o "ideal do eu"  — efeito do Édipo — é constituído  por exigências externas ao indivíduo, particularmente por imperativos éticos transmitidos pelos pais, exigências estas às quais o sujeito terá como norma satisfazer. Veiculadas pela linguagem, elas operam a mediação entre o “eu” e o outro, necessária para que seja superada a relação dual imaginária.  Dessa forma, com a entrada no Édipo, o simbólico passa a prevalecer sobre o imaginário (efeitos de prestância, de agressão e de sedução), organizando-o. Essa é considerada a identificação narcísica secundária, identificação ao outro tomado como "ideal do eu" sempre  mediada pelo simbólico, pela palavra. 

Conforme se pode   perceber, são os  conceitos de "eu ideal" e de "ideal do eu", formulados por Freud e retrabalhados por Lacan,    que nos possibilitam  apreender a regulação  do imaginário pelo simbólico. Formas que  também são consideradas como efeitos do discurso do outro. Se o "eu ideal" representa o discurso idealizante, desenvolvido  pela paixão do enunciante, de aceitação incondicional, isento de crítica; de outro lado, o "ideal do eu" pode ser considerado como um discurso judicativo, que coteja traços do sujeito com normas e leis que lhe são exteriores.

Enquanto o "eu ideal" é dominantemente imaginário, marcado pela relação especular com o outro e, portanto, pela idealização, o "ideal do eu" é situado do lugar do simbólico e traz a marca da sublimação. É ainda ele  que comanda o jogo das relações de que depende a relação para com o outro.  É a partir do deslocamento do “eu ideal”para o “ideal do eu” que se  pode  perceber  uma passagem do narcisismo primário para o secundário. Se nossa experiência é fundamentalmente de ordem imaginária, é o simbólico que, ao recobri-la, regula-a e confere-lhe sentido.  

É a troca simbólica  — lugar das exigências da lei, lugar da palavra — que liga os seres humanos entre si  que permite, através da palavra, identificar o sujeito.. É nesse sentido que Lacan apresenta-nos a metáfora da inclinação do espelho como determinada pela voz do outro. Ou seja, mediante a  voz do outro (outro este determinado pela palavra) a imagem se distorce,  o sujeito estabelece outras tantas identificações e se constitui como sujeito desejante. [3]  32332157

Enfim,  a imagem  reproduzida no espelho não se revela assim tão simples pois a  imagem que vemos no espelho é  sempre construída a partir do  olhar do outro.  Da mesma forma, o  que  acreditamos ser encontra-se na dependência  do olhar e do  discurso do outro. Se me vejo bonito ou desejável é porque  tenho razões para acreditar que os outros gostam de mim ou me desejam. Vejo, em suma, o que imagino que os outros  vejam.

Por isso o espelho é ao mesmo tempo tão tentador e tão perigoso para o adolescente. Com certeza todo adolescente quando se olha gostaria de descobrir o que os outros vêem nele. Assim diremos que a adolescência vive “especialmente” o drama do espelho. A questão é que na falta de um olhar de reconhecimento  por parte do Outro simbólico que diga o que deve ser, como deve se portar, que caminhos seguir, é ao espelho  — Outro imaginário — que o adolescente  se dirige de forma absoluta estabelecendo-se aí um laço que o captura e aprisiona.[4]  

Mas se até aqui me remeti a um espelho que dá unidade,  para pensar o fenômeno  da  adolescência  remeto-me a um   “estranho espelho”, em que a imagem refletida  retorna   de  forma distorcida e deformada. Nesse sentido, imaginem o aconteceria se ao olharmos para o espelho, este nos retornasse uma estranha imagem a partir  da qual ficassem visíveis as imperfeições   que não suportamos  nos deparar  e que  procuramos  esquecer ou recalcar.  Tal qual Doriam Gray (Wilde, )   diante do retrato que se desfaz, face a esse “estranho espelho”,    soltaríamos um grito de horror.     

 

Estranho espelho

 

  Com efeito, se uma primeira  relação especular mantida com o infans é marcada pela ilusão de uma imagem de totalidade, de completude (eu ideal) —  é necessário para que sua constituição como sujeito se dê  que tal relação sofra um deslocamento para o “ideal do eu”.   Lembro que somente nessa relação de báscula entre ëu ideal”e “ideal do eu”,  um sujeito desejante poderá comparecer e uma estrutura psíquica será constituída. Momento em que a  oscilação do  espelho  acaba por produzir  uma   “imagem distorcida”,  ou melhor, uma “estranha imagem”.  Funcionamento que se encontrará sempre na dependência  de uma  configuração edipiana produzida a partir do interdito do Pai, representante simbólico da lei.

Cabe dizer que se esta primeira imagem distorcida é vivenciada na infância e determinada pelos efeitos de uma determinada configuração edipiana aí instaurada,  ela retorna com a  adolescência visto ser esta um momento de revivescência do conflito edípico. Com efeito, com a chegada da adolescência é possível  observar um duplo  estranhamento, tanto dos pais em relação a imagem de seus filhos, como dos filhos em relação a imagem de seus  pais. Dito de outro modo,  pais e filhos se olham e se estranham.  

  um artigo de Freud “Das Unheimliche” (1919)   traduzido habitualmente por “o estranho” e “ sinistro” que nos ajuda  a pensar o duplo estranhamento produzido entre   pais e filhos, como dos filhos  em relação a imagem de seus   pais.  Neste artigo Freud destaca a ambigüidade da palavra que oscila entre o familiar e o desconhecido e a relaciona  com a sensação de inquietude do sujeito face ao retorno do material recalcado (portanto conhecido), o qual retorna sob a forma de algo desconhecido e assustador.  Ou seja, algo que retorna de fora , mas que no entanto lhe é extremamente intimo.  

No Dicionário comentado do alemão de Freud,   Hans observa,  (1996, p.238): “A sensação de estar perante algo ‘estranho’ torna-se ainda mais amedrontadora para o sujeito quando se borram as fronteiras entre o real e o imaginário”  Assim sendo pensar em um “estranho espelho”  implica pensar em um para além da imagem, uma espécie de imagem distorcida que traz consigo o retorno do recalcado.         

Assim,  se  por um lado, os pais estranham seus filhos adolescentes, ou melhor,  já não reconhecem nestes — como acontecia quando era criança — a possibilidade de ser o  fruto de seus melhores esforços; por outro lado,  também o  adolescente estranha  seus pais — que até então eram considerados predominantemente como heróis —  estabelecendo  relações ambíguas marcadas pela  dificuldade em reconhecer  o que tem de sobredeterminação paterna.

 Como é possível perceber, a adolescência — diferentemente da infância — pode ser  considerada  como um período oriundo da vivência dessa estranheza frente ao espelho.  E isso vale tanto para os adolescestes como para seus próprios pais.  Dito de outra maneira, a perda da imagem idealizada da criança como possibilidade de realização dos ideais de sucesso e felicidade é  o alicerce imaginário sobre o qual se sustenta  o estranhamento dos pais.  Sendo assim, longe de ser patalógico, o estranhamento é  intrínseco ao papel que   os pais devem sustentar na adolescência de seus  filhos. Além do mais, são os efeitos aí produzidos que possibilitam a um só tempo,  uma necessária separação dos corpos e o comparecimento de um sujeito desejante. Nesse sentido, a adolescência —  momento de validação ou invalidação da primeira operação de inscrição (ou não) do operador estrutural “Nome-do-Pai” produzida no Édipo — diz da possibilidade do sujeito adolescente sustentar-se  como sujeito de desejo.      

Além do mais é bom lembrar  que a dificuldade dos pais em darem conta do estranhamento causado pela adolescência do filho  remete-o  sem dúvida alguma aos efeitos de sua  própria castração.    

 

 [...]  os pais se espelham ma nova imagem do filho crescido, mas o que vêem nesse corpos viçosos não são eles: era eles, não são mais. Atrapalhados com o reencontro em seu filho do corpo da juventude, com as manifestações da paixão, com  a lembrança daquele beijo interminável do primeiro amor, tão mais maravilhoso quanto mais pretérito, os pais  suportam  mal a diferença que se explicita entre o jovem e o adulto. O espelho [...] revela aos pais suas verdadeiras faces. Subitamente envelhecido, adulto grita seu descontentamento com o novo estado. O estranhamento com o filho é também o estranhamento com a própria imagem.(Corso, p.19)  

 

O fato é que dependendo da maneira como o estranhamento é vivido por pais e  filhos ele abre as portas para a agressividade, que fora dos limites,  aponta para a agressão.  Em um  outro trabalho ressaltei   a  presença de uma relação especular em  situações  de violência familiar: capturados por um discurso  produtor de "imagens idealizadas" constituídas no registro do imaginário(eu ideal),  os pais   ficariam impossibilitados  de lidarem  pela via do simbólico (Palavra /Lei)  com uma situação na qual o filho comparece como um outro qualquer  e não mais enquanto  imagem de seu desejo (Roure, 1996). Situação que distorce  a imagem e altera a percepção do filho, que aí se apresenta sob a forma de um “estranho”. Melhor dizendo: diante de uma não submissão dos filhos, alterada a imagem, rompida a relação especular, o pai que não se submete a uma relação constituída pela via do simbólico na qual deveria comparecer enquanto portador e regulador da lei do desejo,    parece  fazer do filho, antes  objeto de desejo,  objeto de gozo.  Preso narcisicamente a uma imagem idealizada de um eterno primeiro amor (“eu ideal”),   o pai  parece buscar no filho, desde sempre, o seu retorno. 

Segundo Becker(1997), quando o discurso social  no qual  os pais tem a necessidade de enganchar seus filhos, fica substituído por uma  captação/satisfação narcísica  (determinada pelo “eu ideal”)  o sujeito está condenado a um não-desejo. Nesse caso, teríamos aí um assujeito, puro objeto de gozo do Outro.   “E esta é a justa denúncia feita pelo adolescente, pois é justamente, deste lugar de objeto de gozo do Outro que ele quer se defender. Denúncia no sentido de ser um produto do mundo moderno, quando os ideais narcísicos estão cada vez mais presentes” (Becker, 1997, p. 109) . 

Mas a  questão complexifica-se na medida em que, se o estranhamento é  aqui considerado como efeito da castração de ambos, produtor  de uma separação de  corpos entre pais e filhos, este pode vir a não se dar.   E  caso este corte não se estabeleça e o adolescente  não  se depreenda de uma relação  especular,   um sujeito desejante aí não comparecerá. Alienado ao desejo do Outro, o sujeito se oferece como objeto de gozo.   Neste momento lembro-me de Tyrone,  um dos personagens envolvidos com o consumo e o tráfico de drogas no filme  “Réquiem para um sonho” (Darren Aronofsky, 2000)  que ao se olhar para o espelho, não se  enxerga,  mas contempla assustado a  imagem  persecutória de sua mãe.     

 

Ideal adolescente

 

De forma metafórica é possível afirmar que a adolescência chega quando o adolescente olha no espelho e reconhece —com estranheza — que algo mudou, ele se acha “diferente”.  Perde a graça infantil e reconhece um corpo “estranhamente” próprio. De fato,  o adolescente não é mais a possibilidade que o sonho do pai se realize e apenas um olhar de reconhecimento do adulto poderia lhe fornecer um lugar.  Mas o olhar falha e ele não ganha nenhum outro tipo de reconhecimento, a não ser um: “Espere  ainda um pouco mais.”     

Neste momento, sem rituais que simbolicamente possam introduzi-lo  no mundo adulto, submetido a uma moratória que o faz recolher/recalcar  seu desejo, o adolescente  passa a interpretar o desejo inconsciente (escondido, esquecido, recalcado)  dos adultos.  Afinal, quem sabe tal interpretação permita-lhe descobrir o ideal do adulto, para então produzir ritos próprios — determinados pelo próprio grupo —  que os possibilitem serem  reconhecidos  como adulto.  Assim sendo, o adolescente se lança numa interrogação continua  quanto ao atributo que deveria possuir para introduzir  — “a si próprio” —  no mundo  adulto.  Entretanto, tal interpretação acaba por produzir efeitos surpreendentes visto que traz consigo a revelação dos desejos proibidos dos adultos. 

 

‘Em geral, o adolescente é ótimo interprete do desejo dos adultos. Mas o próprio sucesso de suas interpretações produz fatalmente o desencontro entre adultos e adolescentes. Pois se estabelece um fantástico quipróquo: o adolescente acaba eventualmente atuando, realizando um ideal que esmo algum desejo reprimido do adulto. Mas acontece que esse desejo não era reprimido pelo adulto por acaso. Se reprimiu, foi porque queria esquece-lo. Por conseqüência, o adulto só pode negar a paternidade desse desejo e se aproveitar da situação para reprimi-lo ainda mais no adolescente. (Calligaris, 2000, p.27)

 

Não tenho dúvida do quanto essa interpretação do desejo dos adultos pelo adolescente é facilitada  pela produção imaginária  determinada por uma  cultura de massa, que oferece “prontamente” uma espécie de repertório social de sonhos e de  ideais. Sabemos muito bem o quanto   a constituição do sujeito contemporâneo, encontra-se  determinada  muito mais pela via das identificações imaginárias (eu ideal) materializadas pelo fluxo contínuo de imagens propostas por um repertório midiático, que por identificações referendadas por instâncias simbólicas  (ideal do eu):  família, escola, igreja, justiça e direito.    

É neste contexto que ao nos deparamos com uma  estética  adolescente — “Todos querem  ser adolescentes” — é possível   pensar na existência de  um ideal cultural a partir do qual os adultos passam a se  identificar.    Neste contexto, as famílias contemporâneas tendem a  viver um tempo único. Ou seja,  todos querem ser adolescentes, todos fazem  parte de uma mesma geração. Mas se pais e filhos gostam das mesmas músicas, freqüentam os mesmos lugares, vestem-se com as mesmas roupas  como situar uma diferença?    O fato é que misturados aos filhos e capturados pelo “ideal adolescente”3,    torna-se cada vez mais difícil aos pais   responder  a estes a pergunta demandada: O que devo fazer para ser reconhecido como um adulto? Mesmo porque talvez tal resposta não tenha sido oferecida pelos pais de seus pais. Daí encontrarem-se ainda aprisionados ao  desejo de serem “eternos”  adolescentes.

 Enfim, imaginem  só o fato de que ao interpretar o desejo dos adultos e procurar descobrir qual seria o sonho deles os adolescentes deparam-se  com sua própria imagem. “O ideal escondido dos adultos eram [são] eles mesmos, os adolescentes.( Calligaris, p. 72) 

   Nessa direção, não tenho dúvida do quanto o último filme de Larry Clark ( diretor de KIDS) e Ed Lachman,  KEM PARK (2002) , retrata essa  louca tentativa de  interpretação dos desejos adultos por parte daquele grupo de adolescentes. O enredo conta a vida de um grupo de amigos californianos que tem duas coisas em comum: o skate e os maus-tratos dentro de casa. Com efeito, seus atos  corpo-rificam   não apenas uma   interpretação do desejo de seus pais,   mas uma entrega  desesperada ao gozo do Outro pelas mais variadas formas[5].  Na falta de rituais simbólicos de passagem que possibilitem a aqueles adolescentes  uma inserção e reconhecimento no mundo adulto, no filme, de forma geral,  o   corpo parece-me ser tomado como lugar de  rituais “próprios”  promotores de uma “ilusória”  inscrição  neste  mundo adulto: “Eu também gozo.”[6]     E ali a  produção  das cenas    tomadas em closes —  de sexo explicito, abuso sexual, suicídio, homicídio e  sado-masoquismo, demarcam  um  tempo em que o imperativo a gozar   conclama   sua visibilidade e publicização.[7]      

 

O professor “estranho”  e o  “estranho”  aluno  

 

Mas se até aqui eu me remeti a um estranhamento  entre filhos e pais, a partir de então remeto-me ainda que rapidamente a relação entre  professor e aluno. Afinal, sabe-se muito bem que cabe ao  mestre a função simbólica e sócio-cultural de sustentar e transmitir as novas gerações — infância e adolescência — a tradição simbólica  que funda, de uma só vez, o sujeito e a cultura.   Mas se assim o é, que tipo de efeitos podem ser produzidos no interior desta transmissão  se tomamos como referência alguns dos dados apresentados pela pesquisa nacional Violência, aids e drogas nas escolas,  realizada sob a coordenação da organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) em que 49%  por cento dos profissionais do corpo técnico-pedagógico das redes estadual, municipal e particular de ensino ouvidos pela pesquisa afirmaram  não gostar das aulas e 42% declararam o mesmo sobre a maioria dos alunos?   

Se em relação aos pais, os adolescentes não mais se apresentam como imagens ideais, mas ao contrário,  funcionam como retorno do impasse de sua própria neurose, os “ideais narcisicos”, as “fantasias de onipotência”, a “ilusão do gozo pleno”    todos  impossíveis de serem alcançados —     temo que em relação ao  professor,  esse funcionamento não se dê de forma diferente.   O corpo jovem e viçoso —  um dia desejado  —,  funcionando como “estranho espelho ” acaba por   incomodar   e  a “rebeldia”  — um dia almejada  — é denegada.  Nesse sentido, lembro-me de uma vez, em especial, quando em uma palestra sobre a adolescência, um senhora  professora  confessa o quanto lhe era insuportável deparar-se  com as  adolescentes cujas roupas colocavam seus corpos  a vista.  Daí uma ferrenha  argumentação em favor do uniforme que en-cobre o corpo portador de “desejos proibidos”.  

 Da mesma forma,  em relação ao aluno, o professor  — antes “suposto saber”,  agora submetido a um esvaziamento simbólico —  destituído de seu saber e marcado pelo “não ter”,  desloca-se para a posição do Outro grande ao “outro” semelhante[8].  Neste contexto, o “estranho espelho”   desloca-se de casa para a escola. Funcionando como imagens distorcidas   - professores e alunos  -  se vêem  e se estranham. 

    Neste ponto retorno às identificações secundárias de natureza simbólica (determinadas pelo “ideal do eu”) a partir das quais um professor poderia  contribuir com a formação de um ideal cuja função é reguladora e normatizante.  Vale dizer que tal processo implica em se considerar a existência  de uma relação que comporte uma dimensão transferencial como processo  mediado pelo ato da  palavra.  Esse processo pressupõe em sua dinâmica a existência de uma suposição de saber a quem me endereço. Uma vez  instalada a transferência,  a figura do professor  passa a ser carregada de uma importância especial,  o que possibilita  a ambos – professor e aluno - a existência de um investimento desejante de um para com o outro.  Desse momento em diante,  o que quer que o professor diga  será  escutado e significado  a partir da posição que este ocupa  no inconsciente do aluno (Roure, 2002). 

Ora, assim como observei em relação ao estranhamento presente entre pais e filhos, também o estranhamento produzido no interior da relação professor e aluno  pode  funcionar tanto como produtor de diferença, e portanto como possibilidade de que um sujeito marcado pelo desejo de saber aí compareça, como pode também produzir  atos  que impliquem na destruição do outro. Afinal, diante do outro que não o reconhece, e por isso mesmo,   captura  e aliena, a  escolha do sujeito pode ser irredutível: “Sou eu ou o outro”.  E nessa direção que penso nos atos  de agressão  realizados no interior da escola —    autoritarismo, desrespeito,  vandalismo, alcoolismo, agressão,  delinqüência, drogadição etc —  cometidos tanto por alunos, quanto pelos próprios professores            

Para finalizar,  retomo dois  filmes para colocar em questão os processos de identificação — imaginário ou simbólico — possíveis de serem  estabelecidos entre professores  e  alunos e os efeitos aí produzidos. O primeiro filme é o clássico “Ao mestre com carinho” (James Clavell, 1966) que retrata  os problemas e medos dos adolescentes do anos 60. Um jovem professor (um engenheiro desempregado)  resolve dar aulas em Londres, no bairro operário de East End. A classe, liderada por Denham,  Pamela e Barbara, estão determinados a destruir Thackeray como fizeram com o ultimo professor.  Funcionando como o grande Outro Thackeray  estabelece uma relação transferencial a partir da qual a rebeldia do grupo transforma-se em “desejo de saber”, inscrito no campo do conhecimento e da tradição cultural.  Com efeito, a identificação estabelecida com o mestre produz a possibilidade de ingressarem  no mundo adulto mediado pelos significantes cultura e  trabalho.  

Já em uma outra direção,  gostaria de citar um outro filme que também tematiza a  relação de um professor com seus alunos:  “187 – O Código” (Kevin Reynolds, 1997).  Situado na década de 90  este filme dá materialidade ao processo  esvaziamento simbólico ao qual instituição escola tem sido submetida (Roure, 2003). O processo de identificação de natureza imaginária estabelecido com um dos alunos,     leva ambos    professor e aluno —  a morte.   O filme inicia quando Trevor Garfield  é esfaqueado por um aluno que havia reprovado sendo que logo após o acidente ele  volta a lecionar numa escola pública de Los Angeles destinada as minorias.  

Mas aqui as condições são outras,  além de ser desautorizado pelos  administradores da escola, que consideram os alunos como “clientes”, o professor  também não consegue fazer-se reconhecido pelos alunos. Não é pouco lembrar que após o roubo de seu relógio  — constituído pelo discurso tecnocientífico — o professor passa a usar em suas aulas câmeras de vídeo para o monitoramento de  seus alunos 6.   O fato é que sem conseguir estabelecer uma relação simbólica  — mediada pela palavra —  com a maioria dos alunos,    Trevor, diante dos atos de marginalidade de seus alunos, opta por fazer  justiça com as próprias mãos: mata um dos alunos, e decepa o dedo de outro.  Já no final do filme, em um típico acerto de contas,  assim como os personagens do filme Platoom (Oliver Stone, 1986), professor e aluno, fazem da  “roleta russa”,  um símbolo de coragem. Identificado ao professor,  já caído sem vida sobre a mesa, o aluno toma para si  o poder  imaginário do revolver, repete a roleta e  caí ... tal como o mestre.    ....  

Se no primeiro filme uma identificação simbólica estabelecida com o professor, aí ocupando o lugar de “sujeito suposto saber”, permite aos alunos uma inscrição simbólica  e um conseqüente  ingresso ao mundo dos adultos, já no segundo, a identificação de natureza especular entre professor e aluno — não mediada pela palavra —  determina suas mortes.  Funcionando como duplo do outro,  aluno e professor – não se estranham –  confrontados com  o impasse “ou eu ou o outro”,   atiram sobre o espelho ...  que não  se revelou  estranho ...               

 

Referências bibliográficas

 

 

 ARENDT, Hannah.  Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva,  2000.

BECKER, Ângela Lângaro. Aborrescência, de Quem In: Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Adolescência entre o passado e o futuro. Porto Alegre: Artes e Ofício Ed. 1997. 

CALLIGARIS, Contardo. A adolescência. São Paulo: Publifolha, 2000.- (Folha explica).

CHEMAMA, Roland. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1995.

CORSO, Mário & CORSO, Diana L. Game Over: o adolescente enquanto unheimlich para os pais.  In: Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Adolescência entre o passado e o futuro. Porto Alegre: Artes e Ofício Ed. 1997. 

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

FREUD, Sigmund. (1915) Sobre o narcisismo: uma introdução. Rio de Janeiro: Imago, 1990. (Edição standard brasileira  das obras  psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XIV)

___. (1919)  O estranho.  Rio de Janeiro: Imago, 1990. (Edição standard brasileira  das obras  psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XVII)

HANS, Luiz. Dicionário comentado do alemão de Freud.Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996.   

WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray.

LACAN, Jacques.  O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.   

___. O estádio do espelho como formador da função do eu.   In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1998a.

___.  A agressividade em psicanálise.   In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1998b.

ROZA, Luiz Alfredo Garcia. Narcisismo. In: Artigos de metapsicologia, 1914-1917. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1995.

ROURE, Glacy Q. de  Em nome do amor. In: Trata-se uma criança: congresso Internacional de Psicanálise e suas Conexões. Rio de Janeiro: Companhia de Freud,1999.  

___. E a ciência seduziu o mestre e ... amordaçou a palavra. In:   Educativa. Revista do departamento de Educação da Universidade Católica de Goiás, Goiânia, v.  p. , . 2002.

___. Indisciplina: da palavra ao ato. In:  SOUSA, Sônia M. Gomes. Infância e adolescência: múltiplos olhares. Goiânia: Ed. da UCG, 2002. 

TUBERT, Silvia.  O enigma da adolescência: enunciação e crise narcísica. In: O adolescente e a modernidade/ Congresso Internacional de Psicanálise e suas conexões. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.   

 



[1] - O termo identificação é compreendido neste trabalho enquanto  marca simbólica a partir da qual cada sujeito adquire, não sua unidade, mas sua singularidade. Nesta perspectiva,  todos os  movimentos identificatórios do sujeito, são, por assim dizer, ações subjetivas inconscientes, e não atribuições conferidas, transmitidas  por alguma instância externa.   É importante destacar que as identificações secundárias podem ser consideradas como efeitos de uma resolução edipiana  e cujas funções implicam numa normalização libidinal. 

 

[2] Reafirmando a compreensão de Freud de que o eu é feito de uma sucessão de identificações com os objetos amados, Lacan observa: “O eu é um objeto feito como uma cebola, poder-se-ia descasca-lo, e se encontrariam as identificações sucessivas que o constituíram. “. ([05/05/54],  1986,  p. 199)   

[3] -  E  neste momento, o desejo deixa de se constituir como  “Qual é o meu desejo? Qual é a minha posição na estruturação imaginária? Esta posição não é concebível a não ser que um guia se encontre para além do imaginário, ao nível do plano simbólico, da troca legal que só pode se encarnar pela troca verbal entre os seres humanos. Esse guia que comanda o sujeito é o ideal do eu.” (Lacan, [31/03/54] 1986, p.166)  

 

[4] - É bom ressaltar que em uma cultura narcísica  como a nossa a  metáfora do  espelho  pode ser remetida   a toda a rede imaginária  da qual a televisão é o principal veiculo.  

[5] Cito Larry Clark: "É um filme sobre como tentamos sobreviver à família. Os adultos estão usando esses garotos do jeito mais inapropriado, tentando satisfazer seus próprios vazios emocionais através de seus filhos. Alguns jovens de "Ken Park" não sobrevivem a isso."

[6] Concordo com a afirmação de Tubert( 1999) no texto “O enigma da adolescência: enunciação e crise narcísica” (1999),  de que é possível observar atualmente em nossa sociedade a  existência  de formas equivalentes de  ritos de iniciação, geradas pela estrutura grupal adolescente. Contudo,  segundo ela: “Em um mundo em que a hostilidade e a irracionalidade parecem cada vez mais descontroladas — a tolerância e o reconhecimento e respeito às diferenças, a alteridade, são bem resumidamente escassos — não irá nos surpreender que os ritos de passagem elaborados pelos grupos de adolescentes e jovens centrem-se no exercício da violência.” (1999,  p.65)

[7] O suicídio de Ken Park, logo no inicio do filme ocorre em uma praça de esporte, sendo  registrado por ele próprio em uma pequena máquina de filmar. Fazendo de seu corpo imagem,   e imagem para o outro assistir,   ele “eterniza”  um gozo mortífero.  

[8] Quanto a este processo de esvaziamento, ver o artigo: Indisciplina: da palavra ao ato.

6 Ver o artigo “e a ciência seduziu e mestre e ... amordaçou a palavra”.

 

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