ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO DO SENTIDO DA FILOSOFIA NA EDUCAÇÃO

 

Fabiana Rassi – Mestra em Filosofia Política pela UFG-GO

Prof.ª Convidada da UCG

 

(...) O mundo gravita em torno daqueles que inventam os novos valores: - gravita de maneira invisível. Mas é em torno dos comediantes que gravitam o povo e a fama: assim “vai o mundo”. Assim falava Zaratustra. – F. Nietzsche

 

“...Eu estou ainda a esperar a vinda de um filósofo médico, no sentido excepcional deste termo, cuja tarefa consistiria em estudar o problema da saúde global de um povo, de uma época, de uma raça, da humanidade – e que um dia teria a coragem de levar minha suspeita ao extremo e ousar avançar a tese: em toda atividade filosófica não se tratava até então de encontrar a “verdade”, mas de alguma coisa totalmente outra, digamos saúde, futuro, crescimento, poder, vida...” Prefácio de A Gaia Ciência – F.Nietzsche

 

“A filosofia se recupera a si mesma quando deixa de ser um invento para resolver os problemas dos filósofos e se converte em um método cultivado por eles para tratar dos problemas dos homens.” John Dewey

 

Este trabalho se propõe tematizar o papel do filósofo na educação das crianças e jovens à luz de sua experiência social, econômica, política, existencial, estética e afetiva, a qual se vê inequivocamente refletida em sua experiência de escolarização formal.

Durante os cursos de Filosofia da Educação e Didática da Filosofia, os quais ministramos, afirmamos enfaticamente a necessidade de que os educadores em geral e, de forma mais específica e radical, os professores de  filosofia consigam construir o sentido de sua prática em torno do fortalecimento do ambiente ético e epistemológico imprescindível  à autonomia moral, ética e epistemológica  de cada agente envolvido no ato pedagógico. Dito noutros termos o que afirmamos repetidamente é que se há um rol de atributos fundamentais da filosofia em relação à educação, este é encabeçado pela possibilidade que o método de investigação filosófica,  por ser rigoroso e radical, dá a todos os agentes envolvidos no ato educativo (educador / educando) de repensarem o sentido e o significado de sua inserção no mundo ao lançar luz em tudo aquilo que é ocultado pelo poder sutil e avassalador das ideologias.

Voltemos às origens da filosofia afim de que possamos delinear melhor a questão. Como diria Jean P. Vernant “(...) a filosofia é filha da polis”, ou seja, ela se inscreve nas origens do desejo civilizatório do homem grego – e  é justamente daí que surge o outro lado da moeda filosófica, sem o qual seria impensável qualquer projeto filosófico / civilizatório na Grécia Antiga: a filosofia enquanto um projeto educacional – a PAIDEIA. A razão de ser da filosofia seria, então a de fornecer um instrumental teórico  que possibilitasse aos cidadãos da polis o livre exercício de sua racionalidade como numa alternativa às explicações mito-poiéticas do mundo e à retórica sofística interessada sobretudo na eficácia do melhor argumento com vistas ao exercício do poder.

A maiêutica socrática, ao estabelecer como método de conduta dialógico / filosófica a recondução da questão (afirmada, negada ou perguntada) ao seu interlocutor, explicita uma das maiores qualidades desta tradição filosófica para o ser humano ainda nos dias atuais: a de possibilitar ao indivíduo o questionamento constante e cuidadoso acerca das bases sobre as quais repousam suas convicções científicas, morais, éticas, estéticas, políticas e aquelas acerca das próprias condições de possibilidade do conhecimento.

Ao se voltar criteriosamente em busca dos pressupostos lógicos e epistemológicos que garantem a razoabilidade de suas convicções, o indivíduo, através do logos e da interlocução dialógica com seus pares, torna-se então sujeito do seu processo de construção do conhecimento e autoconhecimento.

Sujeito do e não sujeito a, ou seja, um sujeito  cuja formação moral, ética e epistemológica se dá pela e para a via da autonomia moral, ética e epistemológica. Passamos necessariamente pelo âmbito da liberdade humana individual e entramos inelutavelmente no âmbito da liberdade tratada desde o ponto de vista coletivo – esfera da deliberação política.

No entanto se a esfera da política é aquela em que o caráter  público da liberdade humana se manifesta pela via necessária da autonomia moral e a autonomia moral só se adquire pela via necessária da educação, fica estabelecido desde logo o paradoxo da impossibilidade que encerra tanto a educação quanto a política (e que Freud definiu, juntamente com a psicanálise e o amor  como tarefas impossíveis).

     Usemos uma imagem da geometria plana para delinear melhor a questão:     se o paradoxo da impossibilidade marca a educação e a política no tocante às ações humanas que nelas se inscrevem, a saber, educar e governar, a possibilidade de desatamento desse nó talvez só se dê a partir da introdução de um elemento  capaz de exercer a função de vértice aproximador do ângulo entre tais segmentos de reta (educação e política) até quase ao ponto de sua sobreposição, tendo em vista que quanto menor o ângulo entre elas, tanto maior será sua proximidade com o objetivo emancipatório do ser humano – este elemento é a filosofia.

Voltemos um pouco atrás  na história da filosofia para  esclarecermos melhor os termos de nossa proposição, com a devida ressalva acerca do caráter arbitrário de nossa escolha dos autores que, segundo nosso entendimento, emblemam melhor a questão da relação entre a educação, a política e a filosofia.

Se com  a maiêutica socrática a filosofia recebe a conotação de busca rigorosamente racional e de caráter científico das causas primeiras, com Platão tal busca encontra seu termo com a ascese à VERDADE ÚLTIMA ou SUPREMO BEM só alcançável pelo método dialético que o filósofo possui e que o habilita com exclusividade a conduzir os homens à justiça e à autonomia ética e moral, que para Platão é a “consciência da relatividade do mundo sensível.”[1] O “homem” enquanto expressão da subjetividade não se coloca na utopia da República platônica e a questão da liberdade  só é considerada do ponto de vista da libertação coletiva dos habitantes da cidade que antes da ação político pedagógica do rei-filósofo-educador  viviam sob o jugo das aparências e da mutabilidade do mundo sensível. Deste ponto de vista a volta do filósofo à Caverna representa tanto o seu amor à Sabedoria quanto a consciência da necessidade que tal sabedoria lhe impõe de conduzir os demais habitantes da Caverna à autonomia – esta é a sua missão pedagógica.

Toda a fixidez da sociedade idealizada por Platão se justifica pela “preocupação de retirar o fundamento da vida política da esfera do contingente e colocá-lo sob a égide da universalidade”[2], alcançável apenas pela racionalidade filosófica que se estende para a sociedade ao impor uma estabilidade total. Dentro desta visão “o papel do filósofo seria o de proporcionar condições tais que a vida política se desse sob a égide do universal.”[3]

Apenas com Descartes é que a universalidade passa a ser considerada a partir do sujeito que se torna sujeito de sua racionalidade ao estender o poder da razão (pela posse do método científico) sobre tudo aquilo que no real é passível de ser apreendido objetivamente. O poder do SUJEITO torna-se quase ilimitado frente à realidade objetificável e portanto transformável, fabricável.

Apesar do engajamento político e social do filósofo não fazer parte do rol de preocupações  da filosofia cartesiana, seu alcance social é gigantesco dada a influência fundamental que exerceu sobre a direção tecno-científica da civilização ocidental a partir do séc. XVII, com todas as conseqüências históricas, sociais e políticas aí implicadas.

Tal fato é assim constatado por Silva:

“(...) Há, portanto, uma dimensão histórica da razão que surge a partir do momento em que a filosofia fez do homem o agente transformador, pela mediação teórica, da relação homem/mundo. E não é  preciso muita perspicácia para avaliar o quanto este estatuto do sujeito contribuiu para a direção histórica que ainda hoje estamos seguindo. Sobretudo se pensarmos na complementação que essa idéia de subjetividade recebeu em Kant.”[4]

Kant também irá aprofundar a reflexão sobre o paradoxo em que se inscreve a educação quanto ao seu papel no processo emancipatório do homem ou de passaporte para que o homem possa sair da menoridade e alcançar a maioridade intelectual e moral.

Como iluminista que é,  Kant apostará todas as suas fichas no Sujeito capaz de assenhorar-se de sua razão e emancipar-se moral, ética e intelectualmente pela via da educação.

Esta crença nos poderes infinitos da razão encontrará em Nietzsche um dos seus críticos mais radicais. Para ele todo o projeto de “uma racionalidade capaz de fabricar a história” que se instaura no pensamento da civilização ocidental desde Sócrates e Platão e que se projeta na moral através da nossa herança judaico-cristã se funda na negação da vida, ou seja, na negação da maneira apaixonada e desordenada que caracterizou a presença do homem para si e no mundo. Por decorrência Nietzsche verá no projeto educacional deste nosso modelo civilizatório não mais do que aquele que cumpre a função de um braço poderoso  a serviço da domesticação e da mortificação da vida afim de garantir a perpetuação de moral dos fracos.

Segundo nosso entendimento, a recusa nietzschiana, apesar de ser de fundamental importância e constituir-se num dos paradigmas para o balizamento do problema da inserção do homem na história, na cultura  e na política, não esgota todas as nossas possibilidades de pensá-lo. Ora, o trabalho da filosofia consiste, nas palavras de M. Chauí, em “transformar a experiência imediatamente vivida numa experiência  compreendida” negando ou suspendendo o seu sentido imediato e desvelando pela reflexão  o seu sentido mais profundo que habita num tempo e num espaço que lhe são próprios. Desse ponto de vista o filósofo deve dar conta da complexidade da relação homem / história , indivíduo / totalidade, sem cair na armadilha fácil de dar à razão o poder absoluto de ordenar e explicar todas as dimensões da vida humana e nem tampouco de negar-lhe  todos os atributos.

Acreditamos que o ponto de equilíbrio  reside numa fenomenologia que leve em conta  toda a carga do real e das determinações históricas que pesam sobre o indivíduo sem deixar de considerar que sua vida será o resultado de sua interação  subjetiva consciente e inconsciente com as suas determinações objetivas. A questão da liberdade e da autonomia moral se inscreve precisamente nos interstícios dessa tecitura. Então se por um lado o homem é agente da história e por outro ele sofre os seus efeitos, o sentido da história é por ele testemunhado  na medida mesma do seu engajamento nela, como nos propõe       Maurice Merleau  Ponty.

Feita esta digressão por entre algumas concepções que segundo nosso entendimento evidenciam claramente as diferentes formas de conceber a relação entre o indivíduo, o sujeito autônomo, a razão, a história, a política a filosofia e a educação, podemos afirmar conforme o fizemos antes, que a educação não é uma questão de “conhecimento de... a ser ensinado”, mas sim uma produção de sentido do que é ensinar e como tal ela se inscreve no âmbito da deliberação, ou seja da política.

Porém, o mito que vivenciamos nesta nossa pós-modernidade neoliberal é o de que quanto mais conhecimento científico eu detenho, menos  eu preciso deliberar politicamente, já que a ciência, ao tornar possível o conhecimento total de um objeto, permite  que eu me aproprie dele ao ponto de determinar todas as leis que o regem, de tal forma que não haja nenhuma necessidade de deliberação política a seu respeito.

Na verdadeira acepção de democracia o poder político é o que define a deliberação e não o saber do especialista, do tecnocrata, que determina o que deve ser feito previamente.

Se deste ponto de vista a democracia é uma prática, uma forma de vida que se determina a partir do significado que ela constrói para si enquanto prática e não o contrário, então a educação da, na e para a democracia não poderia se determinar de outra forma, conforme já afirmou o pragmatista, porém não utilitarista, John Dewey.

Esta consciência da necessidade de que nossa prática política-pedagógica-filosófica seja capaz de se autocriar é de suma  importância, ainda mais nos dias de hoje, em que os arquitetos da mídia globalizada assumem o lugar do grande educador das massas e querem fazer crer a todos que somos “o grande irmão”, na grandeza de nossa mediocridade (“ vide programas do tipo Big Brother” ); no cultivo do espelhamento acrítico da dimensão grotesca de nossa existência como um valor estético a ser reverenciado (vide Ratinho, Gugu, ect ); no cultivo da busca desenfreada do dinheiro e da “fama” como únicos meios de afirmação individual (vide “No Limite, Fama” ), etc numa sociedade que vai palatina e crescentemente rompendo o contrato social fundamentado numa ética mínima que conseguiu, pelo menos até aqui, que não saiamos todos a bater carteira nas ruas. Ou que, noutros termos, garantiu, ainda que parcialmente, o nosso projeto civilizatório.

Então se a educação é uma prática capaz de se autocriar e cuja finalidade se esgota nela mesma, nós filósofos-educadores devemos dar como existente uma autonomia inexistente justamente para que aqueles a quem a nossa prática se dirige possam ter a oportunidade  de conquistá-la de forma a se engajarem na história como quem se procura e não com a pretensa segurança daquele que de antemão detém as respostas e definitivamente já se encontrou[5].

  

BIBLIOGRAFIA

 

*Bibliografia

-         LARROSA, J. e LARA, N.P de (orgs.) – Imagens do Outro. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998

-         VALLE, Lilian do – “A educação como Enigma e como Atividade  prático-poética: implicações para o ensino da Filosofia da Educação”. Paper apresentado no “Encontro Internacional de Filosofia e Educação” Junho 2001 – UNB - Brasília

-         PORTO, Tania Maria E. – A televisão na escola. Afinal, que pedagogia é está? Araraquara: JM Editora, 2000.

-         NIETZSCHE, F.  – Breviário de Citações ou Para Conhecer Nietzsche. Seleção, org. e trad.:  Duda  Machado  São  Paulo: Landy, 2001

-         SILVA, Franklin Leopoldo – Função Social do Filósofo in A Filosofia e Seu Ensino / Paulo Asrantes...et all. Salma T. Muchail (org.). – Petrópolis, RJ: Vozes; São Paulo: EDUC, 1995 (Série Eventos).

 

[1] SILVA, Franklin Leopoldo – Função Social do filósofo in A Filosofia e Seu Ensino / Paulo Asrantes... et all;

                                                  Salma t. Muchail (org). – Petrópolis, RJ: Vozes; São Paulo: EDUC, 1995. – (Série eventos) p. 13

[2] Ibid. p. 15

[3] Ibid. Idem p. 15

[4] Ibid. Idem p. 17

[5] Cf. VALLE, Lílian do  - “ A educação como Enigma e como Atividade prático-poética: implicações para o ensino da Filosofia da Educação”. Paper apresentado no “Encontro Internacional de Filosofia e Educação ”junho

2001 – UNB – Brasília, p 22. 

 

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