A LEITURA LITERÁRIA NA ESCOLA:

A PALAVRA COMO DIÁLOGO INFINITO

 

Maria de Fátima Cruvinel*

  

Que concepção de leitura tem determinado a prática leitora em sala de aula? Esta é uma pergunta que se coloca no centro das investigações realizadas na pesquisa que aqui sucintamente apresento, cuja configuração é muito mais de problematizações e provocações que propriamente respostas. Com base em uma perspectiva discursiva de linguagem, conseqüentemente sinalizando uma compreensão de leitura como prática discursiva, este trabalho focaliza a leitura literária na escola, com maior ênfase na escola de ensino médio, nível em que tradicionalmente a literatura se coloca como disciplina escolar.

A grande provocação para a realização desta pesquisa teve origem num certo sentimento de insatisfação experimentado por muitos professores com quem partilhei minhas experiências em cursos de extensão, bem como no diálogo com os licenciandos em Letras, futuros professores de língua portuguesa e literatura brasileira. Motivaram-me também perguntas como a de um aluno: Professora, você não vai ensinar literatura? e diante da minha surpresa, o complemento da questão: Aquele “negócio” de realismo, romantismo, que meu irmão estuda?, quando acabávamos de ler e apreciar um texto literário em sala de aula; ou de colega, professor de outra escola: Que período literário você está trabalhando?, quando naquele momento estudávamos a narrativa e meus alunos liam A hora da estrela, de Clarice Lispector, e Uma vida em segredo, de Autran Dourado, para conhecermos personagens tão diferentes e tão igualmente tocantes, como Macabéia e Biela.

Sem a pretensão de minimizar o feixe de implicações que se acercam da leitura escolar, incluindo-se problemas conjunturais da educação brasileira, este trabalho aponta como focos essenciais a inscrição da prática de leitura literária num espaço social determinado e a concepção teórica que sustenta essa prática. O enfoque desta pesquisa restringe-se, assim, à reflexão sobre a leitura literária como processo, um processo discursivo em que estão inseridos os sujeitos produtores de sentido, autor e leitor, ambos mediados pelo professor e determinados sociohistoricamente, bem como inscritos na ordem institucional escolar. Trata-se de investigar a leitura como uma prática que sofre duas restrições: uma por tratar-se de um gênero discursivo específico, o literário; outra por situar-se num espaço também específico, o escolar, o que acrescenta mais implicações ao campo a ser pesquisado. Esta abordagem não se ocupa, pois, da leitura de que trata Proust em seu saboroso ensaio e declarado elogio do ato de ler, intitulado Sobre a leitura, em que ele rememora suas férias, durante as quais a interrupção de um livro para o almoço era-lhe abominável. Na presente abordagem, portanto, nada do desejo particular ou da solidão do quarto ou das sombras das árvores nos abrigando do mundo exterior para um deleite maior do texto lido; muito ao contrário, tudo da prática escolar, e essa é quase sempre a regra, nos obrigando a ler.

Quanto à organização da pesquisa, delineiam-se três movimentos. No primeiro, o objetivo é esboçar uma paisagem da leitura, mais especificamente, a leitura literária e o lugar que essa atividade ocupa na escola brasileira de ensino médio, com ênfase nas duas últimas décadas. Para isso, são considerados alguns estudos que problematizaram a questão pedagógica da leitura, com o intuito de marcar o já-dito sobre a prática de leitura literária no contexto escolar. Uma breve tomada da palavra institucional entra na composição desse movimento, a fim de que tenhamos uma mostra do mais recente discurso político-educacional a respeito da prática pedagógica da leitura.

Nesse mesmo movimento, partindo de uma concepção de linguagem pautada pela interação ¾ o que não pressupõe o apagamento da heterogeneidade constitutiva da sala de aula, mas ao contrário a evidência desse espaço como lugar de conflitos e contradições ¾, a composição da paisagem pretende enfocar o papel do professor na atividade de leitura do gênero literário. Entendendo que o aluno-leitor encontra-se em processo de formação, o propósito é discutir a categoria do professor como mediador privilegiado tanto pela sua maior experiência de leitura, quanto pela sua proximidade ao aluno. A mediação do professor é vista positivamente, mas a relação saber-poder aponta para uma perspectiva crítica da compreensão ingênua de interação em sala de aula.

Por que não posso ler Paulo Coelho em vez de Machado de Assis? Mais uma taxativa pergunta, vinda de nossos alunos, que sugere a tomada de outro viés e acrescenta mais um ponto na composição desse primeiro movimento da pesquisa. Trata-se da presença do texto clássico na sala de aula, enfoque que demanda a discussão dos protocolos que definem o que é e o que não é literatura, ou o que determina os modos de dizer e aquilo que se pode e se deve dizer em certa época, por extensão, da polêmica questão do cânone literário. O propósito é o de argumentar não sobre a negligência ao cânone, mas sobre a sua necessária revisão e alargamento.

No segundo movimento, o intuito é discutir algumas idéias cristalizadas, pelo domínio comum e especialmente nos domínios escolares, que orientam a prática de leitura literária em sala de aula e determinam o diálogo sobre a leitura na escola. Tomadas como verdades, são nesta pesquisa entendidas como mitos, que funcionam, em certa medida, como uma das bases de sustentação de um inconsciente coletivo, mesmo com uma significativa circulação dos vários estudos sobre leitura e produção de sentidos. Consideram-se mitos:

1.      Ler é entender o que o autor quis dizer;

2.      O texto literário permite qualquer leitura;

3.      Ler é entender a mensagem do texto;

4.      A leitura do texto clássico é difícil;

5.      A atividade de ler é sempre prazerosa.

Orientado pela compreensão discursiva de linguagem, o propósito do terceiro movimento é formular uma possível concepção de leitura e interpretação, mediante a discussão de categorias como discurso, autoria, texto, leitor. A teoria de Mikhail Bakhtin ¾ tomada inicialmente em seu conceito fundamental de dialogismo, sustentado pela compreensão de linguagem como resultado da relação entre interlocutores que, numa situação de interação e, conseqüentemente, conflito, produzem sentidos ¾ coloca-se como o matiz inicial. Doutra meada, especialmente dos estudos discursivos de Michel Foucault, a compreensão de linguagem como um murmúrio infinito de vozes da história, do que decorre a concepção de texto como um discurso que tem sua singularidade, mas que é parte integrante de um discurso maior e coletivo, a história da época em que é produzido.

Assim, o objetivo maior do presente estudo é refletir sobre a prática de leitura literária escolar, com base em uma compreensão de discurso, incluindo-se o literário, como um conjunto de enunciados possíveis num determinado espaço e momento sociohistóricos. Trata-se, portanto, de abordar a prática social da leitura como um modo de interlocução que coloca no centro de sua elaboração o papel que os interlocutores desempenham na constituição dos sentidos, mediante algumas determinações e protocolos mutuamente aceitos. Especialmente do discurso literário, entra no campo das problematizações o que chamo ferida literária: longe de ser uma prática cotidiana, o que se acentua mais agora em atraentes tempos de mídia eletrônica, a leitura literária é marcada pela contradição de ter seu espaço assegurado na escola e ao mesmo tempo ser assujeitada às coerções desse espaço, o sistema escolar.

Exposta sucintamente a organização da pesquisa, detenho-me na discussão sobre a leitura, cuja síntese aqui apresentada aponta como princípios constitutivos da atividade de ler as categorias: discurso, autor, leitor, texto.

Se o texto pode ser entendido como um jardim de caminhos que se bifurcam, como apreender-lhe os sentidos? Se não estão restritos nem no autor, nem no leitor, tampouco na materialidade lingüística, não se colocando, pois, na aparência da superfície textual, como o leitor pode deles se avizinhar? E mesmo que algum sentido já tenha sido encontrado, e as letras, palavras e frases continuem as mesmas, ainda assim haveria sentido a ser buscado? Essas são interrogações que se colocam, quando nos perguntamos sobre leitura.

Por outro lado, o texto não é um corpo enigmático que se apresenta ao leitor à imagem e semelhança da Esfinge em sua crueldade absoluta: Decifra-me ou devoro-te; ou uma cartola mágica de onde o leitor retira os mais diversos sentidos ou, mais improvavelmente ainda, o sentido. O uso da metáfora borgeana ¾ jardim de caminhos que se bifurcam  (BORGES, 2000) ¾ deve pressupor que não há necessariamente um caminho que leve a um alvo desejado, assim como não há um centro. Afinal, a questão quando se trata de leitura, da perspectiva em que me coloco, deve ser: como se constroem os sentidos?

Desse modo, tratar de leitura implica tratar de produção de sentidos. É como atividade de interpretação que compreendo a leitura. E falar em interpretação é considerar a intervenção de sujeitos, autor e leitor, no mundo; é falar de uma prática situada temporal e espacialmente. Desse modo, esta abordagem da interpretação não se trata da mesma da hermenêutica clássica que supunha com essa atividade a busca pela “verdade” ou o sentido original de um texto.

Retomando a metáfora borgeana, é pertinente considerar que a tarefa do leitor é a de adentrar o jardim e embrenhar na floresta da linguagem; ou para falar com Eco (1994), o ofício do leitor é construir suas próprias trilhas para entrar no bosque. Recorrendo à imagem do labirinto representada pela cidade, comum ao discurso moderno, o trabalho do leitor é o de percorrer avenidas, ruas, becos, procurando construir sentidos com as palavras e cenas encontradas no trajeto. Disso, não se depreenda equivocadamente a idéia de que os sentidos de um texto, porque não estão aparentes, encontram-se ocultos, demandando um trabalho mapeado de buscas, como se o que é procurado já estivesse instalado aprioristicamente, ou seja, como se os sentidos se fizessem independentemente da experiência da leitura; ou como se fossem tesouros enterrados à espera de leitores-piratas que, despojados de qualquer sentido e história, apenas pilhassem a palavra em sua matéria bruta, sem nada dar em troca. Ora, o sentido não é algo dado previamente, é, antes, um efeito provocado pelos processos discursivos que nos envolvem a todos, leitores, com os textos que lemos, com nossa história e a dos textos. E a história, tal como o fio de Ariadne, não nos desampara; esse é o consolo: saber que nunca estamos sós no labirinto. Mas se não nos abandona, também não nos conduz apenas ao Minotauro e, com sua derrota, à porta que levará à liberdade. Indica-nos muito mais do que uma única saída.

Embrenhar na floresta, dispostos a ora nos perdermos entre tantas veredas e bifurcações que vão dar nas mais variadas possibilidades de sentidos, ora nos encontrarmos como sujeitos que constroem algum sentido, ainda que momentâneo. Isso porque texto e leitor estão indiscutivelmente ligados à história, às ideologias, às formas de produção, circulação e recepção. Daí a leitura se delinear, com traços difusos, sob a forma de palavras, gestos, nervos e paixões, pressupor movimento, conseqüentemente, atividade e nunca passividade de seu agente, no caso o leitor.

Variadas possibilidades de sentidos não quer dizer quaisquer sentidos. Os sentidos são, de certa maneira, limitados pelo contexto que, por sua vez, é ilimitado, em decorrência da heteroglossia e pluridiscursvidade. Por isso é possível afirmar que há tantos sentidos quantos contextos possíveis e que há uma renovação ilimitada dos sentidos em qualquer contexto novo. Aí um paralelo com a noção de grande temporalidade, que torna o diálogo infinito e inacabável, de forma que nenhum sentido morre. A palavra, diz Bakhtin (1997) “quer ser ouvida, compreendida, respondida e quer, por sua vez, responder à resposta, e assim ‘ad infinitum’”; assim, ela “entra num diálogo em que o ‘sentido’ não tem fim”.

Desse prisma, a atividade de leitura não pode ser concebida como a procura pela pedra filosofal escondida por trás de palavras codificadas. Ler é estabelecer com o texto, mais precisamente com as vozes nele audíveis, uma interlocução, um diálogo, aparentemente mudo, mas permeado de relações e interferências. O encontro com os sentidos não é possível sem a relação dialógica, porque a leitura é encontro e confronto, do que resta perceptível o princípio da exotopia, tanto do autor em relação ao leitor, quanto em direção inversa. Um exemplo claro de que os sentidos se constroem com base no lugar que o leitor ocupa é o movimento da interpretação de um texto nas diversas leituras que um mesmo leitor faz dele.

Uma experiência de Zumthor (2000) ilustra com propriedade a dependência dos sentidos de suas condições de produção e recepção. Apesar de se referir a uma situação de oralidade, é possível dimensionar essa experiência para o âmbito da recepção da palavra escrita. Conta-nos Zumthor certa passagem de sua infância parisiense, quando no itinerário entre sua casa e a escola parava, com seus companheiros, para ouvir os cantores de rua. As canções, a que os meninos aderiam em coro, eram-lhes atraentes, mas assegura o teórico que o que os retinha verdadeiramente, fazendo-os se arriscarem a perder o trem, era o espetáculo. Não havia somente a canção, tudo ali a compunha, tudo ali era a canção:

Havia o homem, o camelô, sua parlapatice, porque ele vendia as canções, apregoava e passava o chapéu; as folhas-volantes em bagunça num guarda-chuva emborcado na beira da calçada. Havia o grupo, o riso das meninas, sobretudo no fim da tarde, na hora em que as vendedoras saíam de suas lojas, a rua em volta, os barulhos do mundo e, por cima, o céu de Paris que, no começo do inverso, sob as nuvens de neve, se tornava violeta. (ZUMTHOR, 2000, p.32)

A recepção não se restringiu às canções no que se refere à letra e à melodia; elas foram percebidas como enunciados inseridos numa situação, foram compreendidas dialogicamente como um enunciado que é um todo de sentido, ou seja, que envolve muito mais que a simples materialidade das canções. Não é possível afirmar que todos os textos que lemos nos deixam marcas profundas, mas certamente os que ficam inscritos em nossa memória, assim ficam em decorrência das condições que nos cercam no momento em que os lemos, em conseqüência do lugar que ocupamos quando da leitura. Reiterando, não lemos apenas com os olhos, mas com a carne, sangue, nervos e paixões; jamais lemos apartados de nossas lembranças, colocamo-nos inteiros nas palavras. Nossa história nos acompanha.

Daí não ser aceitável a verdade de que um texto seja depositário dos sentidos; estes não precedem naquele texto, tampouco se encontram lá depositados. A verdade presumida do texto não corresponde à verdade sempre adiada, sempre suspeita da leitura. Para Foucault (1995, p.26), as margens de um livro jamais são nítidas e rigorosamente determinadas, pois “além do título, das primeiras linhas e do ponto final, além de sua configuração interna e da forma que lhe dá autonomia, ele está preso em um sistema de remissões a outros livros, outros textos, outras frases: nó em uma rede”. Sua unidade só é possível como um feixe de relações, portanto, é variável e relativa e só se constrói mediante um campo complexo de discursos. Logo, sua leitura, como a de qualquer enunciado, se apresenta como uma produção de sentidos, uma produção que associa decodificação dos signos que compõem um texto com a percepção avaliativa do todo que o circunda, num trabalho de percepção das marcas e vestígios que apontam, no texto lido, o diálogo com outros textos.

Mas convém que essas marcas sejam vistas sempre sob suspeita, já que, mesmo na qualidade de simples vestígios mas como signo que são, apresentam naturalmente derivas. E pode-se dizer que é aí mesmo, no desvio, que habita o ponto nodal dos sentidos, se considerarmos com Foucault (2000, p.71-72) que a linguagem “não é mais do que o rumor informe fluido, sua força está na sua dissimulação”. E nessas brechas ou vazios, no mais das vezes implícitos, subentendidos, pressupostos, a possibilidade de maior interferência do leitor no ato da leitura. Dessa perspectiva, é desautorizada a compreensão de que a leitura leva o leitor a um sentido, além de ser colocada em questão a proposta de níveis de leitura. O que se tem são gestos de leitura, em vez de leitura, e efeitos de sentido, em vez de sentido. Um enunciado, por sua dimensão constitutivamente heterogênea, pode ter um sentido e, ao mesmo tempo, outro, não deixando de significar o primeiro.

Nietzsche, Freud e Marx, situados no século XIX, teriam redimensionado a relação palavra-mundo, mudando a natureza do signo e modificando a maneira pela qual ele era interpretado, e inaugurando, com isso, uma nova hermenêutica (FOUCAULT, 1997). A diferença operada na modernidade, mais notadamente por esses três estudiosos, diz respeito à forma de relacionar profundidade e exterioridade, acentuando-se a segunda; além de a interpretação ter se convertido numa tarefa infindável. Os símbolos passam a ser vistos em cadeia, numa rede inesgotável e infinita, dada sua amplitude e abertura irredutíveis.

Interpretar torna-se, então, uma atividade em perpétuo acabamento porque está sempre a remover as camadas de sentidos, como numa avalanche, e sobretudo porque nada se oferece em estado puro a ser interpretado pela primeira vez; tudo é, já, interpretação: o signo é em si interpretação. E se o homem presta-se a essa tarefa ¾ ou talvez seja melhor considerar que se trata de fado, ou seja, que ele está inapelavelmente condenado a interpretar sob pena de não usufruir da linguagem ¾, presta-se porque não cessa de haver, por baixo de tudo o que é dito, uma intrincada trama de interpretações. Como última característica dessa hermenêutica moderna tem-se a interpretação que se obriga a interpretar-se a si mesma e encontrar-se consigo mesma, indefinidamente. E como conseqüência “a interpretação será sempre, sucessivamente a interpretação de ‘quem?’”, ou seja, o princípio da interpretação nada mais é do que o do intérprete, de forma que a palavra volte-se sempre sobre si mesma (FOUCAULT, 1997, p.26).

Mediante essas considerações, é possível trazer novamente Bakhtin ao diálogo, retomando sua tese de inexistência de palavra original, bem como sua concepção dialógica de linguagem que sustenta a idéia de que compreender é responder a um signo por meio de signos. Com a grande diferença de que há, na base da teoria bakhtiniana, a ênfase na natureza social e ideológica da palavra. Para ele, os sentidos resultam de uma dupla corrente de manifestação: no movimento da expressão individual mas não soberana, porque nunca estamos sós quando dizemos, e nas várias camadas discursivas que revestem nossa voz. Isto porque o sentido não se atualiza sozinho, procede de dois sentidos que se encontram e entram em contato. (BAKHTIN, 1997, p.386).

Sabemos que tanto as considerações de Bakhtin quanto as de Foucault referem-se aos discursos em geral, incluindo-se, evidentemente, o discurso poético. A palavra é sempre plural e inacabada, e essa peculiaridade não poderia deixar de se evidenciar na literatura, mesmo que este seja um discurso que chega ao interlocutor com uma autoria assinalada. Como vimos, a figura do autor coloca-se como uma posição ou função, e de maneira semelhante colocam-se os leitores que, no ato da leitura, encontram-se igualmente situados social e historicamente. Por isso é possível pensar em uma posição-leitora ou efeito-leitor.

Assim, a produção de sentidos resulta, também no texto literário, do encontro desses interlocutores, cada qual com suas palavras carregadas de sentidos outros, nunca acabados. Uma curiosa imagem para ilustrar essa relação é a sugerida por Calvino (1997), em seu interessante ensaio “O mundo é uma alcachofra”: “O que conta para nós na obra literária é a possibilidade de continuar a desfolhá-la como uma alcachofra infinita, descobrindo dimensões de leitura sempre novas”. Nesse sentido, é necessário ter clareza de que conceber a leitura como movimento infinito e plural é considerar que há leituras possíveis. Entendo que a obra se afigura como esse vegetal pela sua constituição em camadas que se recobrem reiteradamente, mas a possibilidade inumerável de sentidos não se deve apenas à obra-alcachofra, deve-se, igualmente, às diversas posições que o leitor-degustador pode ocupar, bem como ao feixe de relações que pode construir.

Relações que são construídas mediante a cena da leitura e possibilitadas pela memória discursiva cultivada em imagens, tal como as lembranças de Zumthor. Longe de se restringir a um conceito, a leitura é prática que põe em movimento a memória. No caso específico do texto literário, há quem veja literatura e memória como empresas iguais. Se entendemos a linguagem como ecos de vozes já ouvidas, uma manifestação que se constrói com o jogo da diferença e da repetição, a literatura, como todo discurso, não se faz senão de retomada do já-dito e, nessa retomada, a inclusão de um dizer novo. Assim, não é só o gênero autobiográfico, hoje bastante em moda até, que busca o passado.

E trata-se de memória coletiva somada à memória individual, tanto do autor, que também é um leitor, quanto do receptor do texto. Reiterando: somadas, mas não necessariamente em harmonia, podendo, pois, haver conflito nesse diálogo, tensão que, aliás, é constitutiva dos sentidos. Na esteira de Bakhtin, Brait (2001) afirma que o diálogo, na forma de estrutura enunciativa e forma dialógica constitutiva da existência das atividades de linguagem, “atravessa o campo de visão e desdobra as possibilidades do ver, incluindo incessantemente a história e a memória na cena de produção de sentidos e de seus efeitos”.

Por isso mesmo a leitura é entendida como interpretação infinita, mas não é possível desconsiderar os diversos mecanismos que subjugam os sentidos dos textos. Como já foi dito, a própria circunscrição da leitura literária na escola apresenta-se como uma forma de controle. Contudo, o discurso não tem o controle total do discurso, porque todo texto leva consigo “possibilidades de significação que escapam sempre de qualquer controle, e todo texto pedagogizado arrasta consigo a possibilidade de pôr em questão e de modificar a gramática na qual ele está inserido” (BERNSTEIN, 1996).

Penso que o discurso literário tem a peculiaridade de escapar aos controles por não ter obrigação de explicar, dar respostas, mas, ao contrário, lançar perguntas e deixá-las no ar; além disso, a relação com o mundo referenciado na literatura passa antes pelo imaginário. Como representação verbal de discursos que é, como palavra que, no movimento do trabalho simbólico, dá-se a ler e, somente então, faz manifestar o homem, sempre em relação com o outro e sua história, o texto literário constitui-se em um objeto instável, permeado de pontos de deriva, oferecendo, sempre, espaços de interpretação ao leitor, espaços em que o imaginário coloca-se em grande vantagem. Se esse é um movimento constante, é porque há uma recusa a qualquer interpretação que se dê por acabada, de forma que o discurso literário carrega como marca a insubordinação. Se a pedagogização de um texto literário resulta, essencialmente, de um efeito de leitura, esse efeito pode ser provocado ou não, mas não garantido, o que é possível por se tratar desse gênero em particular.

Em uma sala de aula, ambiente vivo e ansioso pela instauração da novidade, a leitura literária pode colocar-se como provocação justamente da percepção da polifonia, apontando a possibilidade de diferentes gestos de leitura. Mais que qualquer outra, a leitura literária pode ser considerada paradigma da interpretação como diálogo, como colóquio infinito cuja tecitura se faz como um tapete é feito de vários fios, matizes e pontos que se repetem para compor o todo. Muitas histórias que se repetem, mas trata-se de uma repetição que se abre ao infinito, porque ler é, mesmo na repetição, provocar rupturas, deslocar regras, trilhar desvãos, enfim, produzir a diferença. Além do mais, tal como o autor e o professor, também o leitor não tem poder de controlar os efeitos de sentido de sua leitura, seu imaginário não cessa de trabalhar.

É momento de afirmar com Bakhtin (: a palavra terá sempre seu festival de regresso. Com a palavra bakhtiniana ecoando em Foucault (1999, p.26), reitera-se: “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”. Aqui o filósofo francês trata do princípio do comentário, cujo papel relevante é o de dizer sentidos que se mantinham articulados silenciosamente no texto primeiro, comentado. E esse papel consiste em certo paradoxo: “dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito”.

Bakhtin (1997) adverte que um texto, diferentemente da língua como sistema de recursos, nunca pode ser traduzido até o fim, já que não existe um texto dos textos, potencial e único. Não existe um texto-pai, digamos assim, que exerça completa ascendência sobre outros textos; o que pode haver são alguns fundadores de discursividade.

Da concepção de texto como um objeto inacabado ou, como compreendo, um objeto que se encontra em permanente acabamento, para a idéia de infinitude da compreensão, incompletude da leitura, tem-se a conclusão de que os sentidos são produzidos na urdidura do discurso, tanto na cena da criação, quanto na cena da leitura, ou seja, no movimento incessante dos interlocutores. A leitura é, pois, como um diálogo infinito, no qual se escutam as palavras, por cujas frestas se percebem vestígios da memória discursiva dos sujeitos interlocutores envolvidos no processo. Ao acercar-se de um texto, o que ocorre ao leitor é a ação de escutar as palavras que dão forma à sua materialidade e ouvir a linguagem que o constitui, o que lhe permitirá perceber os sentidos discursivos e interdiscursivos que se deixam entrever em forma de diálogo com a memória e a história. E a linguagem, fazendo ouvir ecos do já-dito, como quer Bakhtin, ou como o burburinho do já pronunciado, como quer Foucault, é o que mais se faz ressoar no texto literário. Diálogo explicitado na eterna repetição e recriação das palavras, frases, textos, cenas, meias-histórias, histórias-inteiras.

Isto posto, a comprovação de que a leitura pode ser delineada como uma “tensão nunca resolvida entre o dito e o ainda não-dito e como uma operação que tem, entre seus componentes, a ânsia de desdizer o dito para abrir no seu interior uma possibilidade de novidade” (LARROSA, 2000, p.17). Trata-se de compreender a leitura como uma ação que faz o texto explodir e se dispersar. Operação que exige sobretudo maleabilidade do leitor, especialmente se se trata de enunciado pertencente ao gênero literário. Pode-se afirmar que a leitura desse gênero, por natureza polissêmico, não cessa de sucumbir às fendas do discurso, e nesse deslizamento constante acumula-se na forma de memória cultural, confirmando a compreensão de literatura como a “porção mais dúctil, o limite mais extremo do discurso, o espaço onde ele se expõe por inteiro, visando reproduzir-se, mas expondo-se igualmente à infiltração corrosiva da dúvida e da perplexidade” (SEVCENKO, 1999, p.20).

Isso porque o gênero literário constrói-se sobre dois pilares, o imaginário e o fictício, cujos fundamentos não estão definitivamente elucidados, ou talvez fosse melhor admitir que não sejam passíveis de apreensão. A literatura não se limita a contar algo, ela é única e ao mesmo tempo desdobrada; ela é uma “fábula que, todavia, é dita em uma linguagem de ausência, assassinato, duplicação, simulacro” (FOUCAULT, 2000, p.141). Talvez seja possível pensar que o “impulso metafórico interno da discursividade”, de que fala Pêcheux (1997), esteja inapelavelmente presente na literatura, mais que em qualquer outro tipo de discurso.

Em qualquer gênero, mas principalmente no literário, tem-se a escrita como trabalho de tesoura e cola, como colagem, citação e comentário, para repetir aqui a imagem de Compagnon (1996) e associá-la à idéia de labirinto, em que nada se cria, tudo se repete no jogo da ausência-presença, morte-vida e, nesse movimento, já a diferença. Diferença do autor à qual se junta a diferença do leitor, cada um na sua singularidade constituída mediante sua maneira particular de selecionar e organizar o já-ouvido e já-lido, para responder dialogicamente ao novo texto que toma para leitura e, com isso, ressignificar. Reiterando, a escrita literária se desenha como uma rede de citações. A linguagem é seu ponto de partida e seu ponto de chegada, cabendo ao leitor deixar-se apanhar nessa rede, não sem também tramar seus pontos e amarrar alguns nós. E nesse movimento, em que também enuncia, se entendo a leitura como atitude responsiva ativa, cabe-lhe também ocupar uma posição e colocar-se como sujeito da leitura.

Em literatura, trata-se da palavra se oferecendo ao leitor, reafirmando sua dúctil composição discursiva, passível de se reduzir a fios, estirar, distender, sem se romper; em sua natureza flexível, elástica, e ao mesmo tempo infinita e inacabada à espera de uma contrapalavra do leitor, que a fará deslizar e ressignificar mediante a posição que assume como sujeito-leitor. Longe de prescrever saberes, a literatura os põe em movimento, numa girândola sem fim, lançando não mais que provocações. Daí a leitura literária ser sempre provisória, invisível, cambiante, sempre suceder nas fronteiras, e com ela podermos ouvir os rumores das palavras, o murmúrio eterno dos textos, burburinho do festival dos sentidos. Mesmo porque, a literatura, como a vida, nos coloca questão após questão, num interrogar infindo, como se estivéssemos, a cada passo, diante do breu da noite.

A palavra, tomada em sua crueza de signo, em sua mera forma de sistema, em sua árida materialidade, nada ou pouco promete. Entanto, em sua instância discursiva, que pressupõe a interlocução entre falantes e inscrição na história, tem o brilho e a explosão de fogos de artifício, proliferando sentidos. Foi essa complexa e instigante particularidade da linguagem que a presente pesquisa objetivou enfocar, com o intuito de tomá-la como princípio norteador da prática de leitura literária na escola de ensino médio. Assim tomada, mas sem deixar de considerar as coerções próprias do campo em que essa prática se coloca, meu propósito foi o de realçar a participação do professor como mediador do encontro entre o aluno e o texto, portanto como relevante figura no desenvolvimento da prática leitora escolar. Se a presença do mediador é significativa, sua concepção de leitura e interpretação é determinante.

Como uma prática enredada a outras, não foram poucas as implicações que se entrelaçaram na composição desse objeto. E mesmo sabendo a luta que travamos com a escrita, e considerando que também meu interlocutor terá entrado em embates com a palavra lida ¾ já que muitas vezes a linguagem nos aponta veredas que inicialmente não pensamos trilhar  ¾ acredito ter alcançado alguns propósitos desta pesquisa, para os quais é chegada a hora de sintetizar minhas considerações, dando-lhes certo acabamento.

O desenho da paisagem confirmou a necessidade de dar relevo a alguns traços próprios, mas nem sempre problematizados, da tensa relação literatura e escola, a par os já-ditos sobre a leitura literária escolar que delinearam o campo sobre o qual foi traçado o esboço provável da abordagem pretendida: a constatação do naufrágio da literatura na escola, o discurso eufórico sobre a importância de ler sustentado sobretudo pelas campanhas de leitura, em paralelo ao interesse de estudiosos por esse objeto, bem como o discurso pedagógico oficial sobre a inserção da leitura na escola.

 Dessa paisagem, a conclusão é a de que, por não ser possível propor antídoto para a ferida literária, a não ser eliminando a possibilidade de seu acontecimento ¾ e certamente não é isso que nós professores de literatura queremos ¾, resta-nos acreditar na força transgressora desse gênero discursivo, e propor a essa ferida uma sutura e o acalento da cicatriz. Portanto, não se trata de apagar essa evidência mas, justamente o contrário, dela tirar proveito, apontando as possibilidades de o discurso literário esquivar-se dos domínios do discurso pedagógico, de forma a marcar a contradição que se coloca na base da prática escolar de leitura literária.

Na esteira dessa postura teórico-pedagógica, a disposição para a revisão do conceito de literatura e a flexibilidade para o alargamento do cânone literário. A depender do que propõe o documento oficial que regula a educação no Brasil, a Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação e mais especificamente os Parâmetros Curriculares Nacionais, a literatura continua a ter seu lugar na escola, e a prática de leitura deve ser parte do projeto pedagógico a ser criado pelos profissionais da educação que atuam em cada escola.

É na forma de mediação, pois, que o papel do professor é apontado como um fator significativo desse movimento de esquiva do discurso literário. Pressupostas na função mediadora, sua concepção de leitura e sua compreensão de literatura determinam a prática leitora a ser desenvolvida com seus alunos. Decorrente das peculiaridades do discurso literário, especialmente sua natureza inacabada e transgressora, a compreensão de texto como um discurso de margens povoadas, que alcança sentido apenas mediante a interlocução, impossibilita, por exemplo, uma abordagem que se afigure única, uma leitura dogmática e fechada ao diálogo.

A proposta de desmitificação da leitura, pelo viés da discussão de verdades que enredam a prática da literatura na escola, recoloca questões que têm alimentado as discussões no campo da teoria literária, mas que ao discurso pedagógico chegam banalizadas. Assim discursivizadas e tomadas na forma de mitos, alcançam um feitio provocador, sobretudo porque, em parelhas, algumas se deixam apanhar em contradição. Desse modo, penso ter chamado a atenção para a banalização de conceitos e categorias que se colocam na base de qualquer composição da prática leitora.

Num caminho inverso, a proposta de uma concepção de leitura buscou, por meio da investigação, recolocar elementos-chave que se encontram na base dos mitos elencados no plano da reflexão teórica, objetivando atingir uma compreensão satisfatória dessas categorias fundamentais a uma concepção de leitura pautada sobretudo pela dialogia. Essa abordagem, é preciso reiterar, não teve o propósito de apresentar ao meu leitor, meus colegas professores de literatura na escola de ensino médio, receitas, técnicas, métodos para uma prática de leitura na escola, e a opção por uma corrente teórica de enfoque discursivo pode atestá-lo.

Concluindo, a hipótese maior que orientou a investigação neste trabalho foi a de que a leitura literária na escola, configurada como uma prática enredada a outras, especialmente à prática pedagógica, sofre coerções próprias desse campo discursivo. Contudo, se as atividades relacionadas à prática leitora se sustentam em uma compreensão do gênero literário como um discurso orientado sobretudo pela transgressão, a prática escolar de leitura literária pode escapar ao controle e à ordem do discurso pedagógico, ainda que a função formadora da literatura seja também prevista pelo professor. Nesse sentido, é fator determinante a concepção que o professor tem de leitura literária.

Com os enfoques propostos, evidentemente não deixando de reconhecer a impossibilidade de abarcar a totalidade das implicações referidas, o pretensão é contribuir com a discussão sobre a leitura literária realizada na escola, para que essa atividade se constitua como uma prática mais significativa para a comunidade escolar. Não se trata de prescrever a formação de leitores contumazes na escola de ensino médio, mas compartir, com meus colegas professores, idéias para a possível constituição de futuros leitores, independentemente do espaço escolar.

 

Referências

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* Profa. do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação – CEPAE/UFG.

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